Espiritualidade,  Psicologia

O discernimento

Tempo de leitura: 6 minutos

Discernir é um verbo que tem origem no latim “discernere” e significa a capacidade de distinguir, perceber ou compreender algo de forma clara e precisa. É a habilidade de analisar, avaliar e tomar decisões conscientes e assertivas.

O padre Cencini em seu livro “Os passos do discernimento” traz que “o discernimento refere-se a uma experiência fundamental que todas as mulheres e todos os homens, de todas as épocas, compartilham: estar à procura da maneira e dos critérios para decidir em que direção dar os próprios passos. Isso vale para situações humanamente extremas ou complexas, mas também em casos bem corriqueiros nos quais a incerteza devida do fato de experimentar uma multiplicidade de impulsos, de sentir-se atraído a tomar diversas direções, sem conseguir compreender qual seja a certa.

Na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, o Papa Francisco nos diz que “Hoje em dia, tornou-se particularmente necessária a capacidade de discernimento, porque a vida atual oferece enormes possibilidades de ação e distração, sendo-nos apresentadas pelo mundo como se fossem todas válidas e boas” (n. 167). Para ele, “o discernimento orante exige partir da predisposição para escutar: o Senhor, os outros, a própria realidade que não cessa de nos interpelar de novas maneiras. Somente quem está disposto a escutar é que tem a liberdade de renunciar ao seu ponto de vista parcial e insuficiente, aos seus hábitos, aos seus esquemas” (n. 172).

Sendo jesuíta, a espiritualidade de Francisco tem fundamental influência de Santo Inácio, que propõe o discernimento como bússola orientadora para a vida. O padre jesuíta, Roberto Jaramillo, apontou que, em Santo Inácio, “a pérola de todo o seu processo de crescimento interior está em um pequeno parágrafo dos Exercícios Espirituais” (32): “Pressuponho haver em mim três pensamentos, a saber: um que é propriamente meu, que sai da minha pura liberdade e querer; e outros dois que vêm de fora: um que vem do bom espírito e o outro do mau”. No processo de conhecimento dessa dinâmica interior, Inácio de Loyola demonstrou que é possível lidar com os sentimentos, reconhecê-los, diferenciar os que favorecem um crescimento espiritual daqueles que paralisam ou impedem o compromisso com os propósitos de Deus para a vida humana, no cultivo do bem.

Na primeira catequese do ciclo sobre o discernimento, o Papa Francisco nos ensina sobre o que significa discernir. “O discernimento apresenta-se como um exercício de inteligência, também de perícia e inclusive de vontade, para reconhecer o momento favorável: são estas as condições para fazer uma boa escolha. É preciso inteligência, perícia e também vontade para fazer uma boa escolha. E há ainda um custo necessário para que o discernimento se torne viável. (…) Cada um deve tomar decisões; não há ninguém que as tome por nós. Numa certa altura os adultos, livres, podem pedir conselhos, pensar, mas a decisão é pessoal; não se pode dizer: “Perdi isto, porque o meu marido decidiu, a minha esposa decidiu, o meu irmão decidiu”: não! Tu deves decidir, cada um de nós deve decidir, e por isso é importante saber discernir: para decidir bem, é necessário saber discernir.

Ele prossegue dizendo: “Portanto: conhecimento, experiência, afetos, vontade: eis alguns elementos indispensáveis para o discernimento. No decurso destas catequeses veremos outros, igualmente importantes. O discernimento – como eu dizia – exige esforço. Segundo a Bíblia, não encontramos diante de nós, já embalada, a vida que devemos viver: não! Devemos decidi-la continuamente, de acordo com as realidades que se apresentam. Deus convida-nos a avaliar e a escolher: Criou-nos livres e quer que exerçamos a nossa liberdade. Por isso, discernir é difícil.

Vivemos frequentemente esta experiência: escolher algo que nos parecia bom e, no entanto, não o era. Ou saber qual era o nosso verdadeiro bem e deixar de o escolher. O homem, diversamente dos animais, pode errar, pode não desejar escolher de modo correto. A Bíblia mostra-o a partir das suas primeiras páginas. Deus dá ao homem uma instrução exata: se quiseres viver, se quiseres desfrutar da vida, lembra-te que és criatura, que não és o critério do bem e do mal, e que as escolhas que fizeres terão uma consequência para ti, para os outros e para o mundo (cf. Gn 2, 16-17); podes fazer da terra um jardim magnífico, ou podes transformá-la num deserto de morte. Um ensinamento fundamental: não é por acaso que se trata do primeiro diálogo entre Deus e o homem. O diálogo é: o Senhor dá a missão, é preciso fazer isto e aquilo; e o homem, a cada passo que dá, deve discernir qual é a decisão a tomar. O discernimento é aquela reflexão da mente, do coração que devemos fazer antes de tomar uma decisão.

O discernimento é árduo, mas indispensável para viver. Requer que eu me conheça, que saiba o que é bom para mim aqui e agora. Exige sobretudo uma relação filial com Deus. Deus é Pai e não nos deixa sozinhos, está sempre disposto a aconselhar-nos, a encorajar-nos, a acolher-nos. Mas nunca impõe a sua vontade. Porquê? Porque quer ser amado, não temido. E Deus também quer que sejamos filhos, não escravos: filhos livres. E o amor só pode ser vivido na liberdade. Para aprender a viver é preciso aprender a amar, e por isso é necessário discernir: o que posso fazer agora, diante desta alternativa? Que seja um sinal de mais amor, de mais maturidade no amor. Peçamos que o Espírito Santo nos guie! Invoquemo-lo todos os dias, especialmente quando devemos fazer escolhas.

Encontramos no prólogo do livro ‘Os passos do discernimento”, do padre Cencini, palavras assertivas do padre jesuíta Giacomo Costa, recordando-nos que “as situações de discernimento podem revelar-se bastante angustiantes, além de dissiparem grande quantidade de energias psíquicas, emotivas e espirituais. Fazer um discernimento significa enfrenta-las “pegando o touro pelos chifres”, assumindo o risco de dar um passo, reagindo à paralisia, abrindo a estrada para a liberdade e para a esperança. Em vez de adiar a questão esperando que as águas se acalmem por si mesmas ou de buscar uma solução heterônoma voltando-se a uma “autoridade superior” qualquer (quer se trate de um “guru” ou de uma norma a que conformar-se extrinsecamente) ou convencer-se de que não se pode fazer outra coisa senão se render às fatalidades da vida, a via do discernimento atravessa o tumulto das paixões e utiliza as energias que elas desencadeiam para identificar uma possível rota.”

Ele prossegue: “A prática do discernimento se apoia sobre a convicção de que o Espírito age na história e na vida de cada um e que sua voz se faz ouvir no coração de cada um. Outro ponto é a confiança teologal de que cada pessoa, não importa em que situação se encontre e de que história provenha, mantém sempre a capacidade de escutar a voz do Espírito e uma inclinação “natural” para o bem, mesmo quando se equivoca ao identificá-lo. Trata-se de uma capacidade que dimana do fato de ser criatura de Deus: o pecado pode obscurece-la, mas nunca eliminá-la.” O padre Cencini explica que “cada um discerne de acordo com a própria sensibilidade. O processo decisório está longe de ser infalível e nem sempre dá à luz a decisão mais correta e verdadeira.”

David Cito, professor de Direito Canônico, em seu artigo ‘Breves notas canônicas sobre o conceito de abuso de poder e de consciência” reitera que “Na teologia católica, a parte mais sagrada do homem é a consciência individual. Uma consciência que permite distinguir entre o bem e o mal. O papel do acompanhante não consiste em dizer à pessoa o que ela deve fazer, mas em ajudar a ter mais luz sobre o que considera melhor para si mesmo. Tomar o lugar da consciência do outro é, de fato, um abuso de consciência.

Ele prossegue: “A relação se converte em abuso quando utilizo a abertura e confiança para colocar-me no lugar da consciência do outro, para impor uma indicação minha, fazendo uso do “poder”. Uso a confiança que as pessoas depositam em mim para guia-los pela minha solução: “tens que fazer isso!”. (…) Em vez de ajudar-lhes a exercer sua liberdade, lhes acostumo a submeter-se. (…) Essa atitude autoritária é certamente prejudicial para a pessoa que a sore não apenas porque lhe faz retroceder em vez de crescer, senão sobretudo porque deforma sua relação com Deus, pelo qual já não poderá escutá-Lo.

Acrescenta, “Uma dificuldade é dar-se conta. Um abuso deste tipo não se vê claramente como o abuso sexual. (…) As pessoas em situação de vulnerabilidade quase “pedem” para serem trataras assim: se apresentam com problemas muito sérios e difíceis, mas em vez de fazer um trabalho de análise e esclarecimento, preferem confiar em um “guru” que lhes diga: “a palavra de Deus te diz que faça isso”. (…) El abuso de consciência não é cometido por monstros, mas pessoas que as vezes atuam de boa fé. (…) A vida cristã e espiritual é um caminho de liberdade. (…) Se necessito sempre de alguém que me diga o que devo fazer, é um sinal de que algo não está funcionando.”

Termino este texto com uma provocação do Papa Francisco: “Para conhecer o que acontece, qual decisão tomar, julgar uma situação, ouvir o próprio coração. Nós ouvimos a televisão, o rádio, o celular, somos mestres da escuta, mas pergunto: você sabe ouvir o próprio coração? Você para para dizer: ‘Mas o meu coração como está? Está satisfeito, triste, busca algo?’. Para tomar boas decisões, é preciso ouvir o próprio coração.”

Indicações de leitura

Aspectos psicológicos do discernimento vocacional, Vagner Sanagiotto

Os passos do discernimento, Amedeo Cencini

Ciclo de catequeses sobre o discernimento, Papa Francisco

Sem que se perceba – crescer em liberdade, Julio Dieguez

Terapeuta e Escritora

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