Espiritualidade

O Anel do poder dos nossos tempos

Tempo de leitura: 5 minutos

Talvez você já tenha passado pela seguinte situação: pegar um livro para ler e não conseguir. Às vezes é preciso ler várias vezes o mesmo parágrafo, porque a concentração está difícil de alcançar. Noutras vezes lemos uma página e minutos depois não recordamos o que foi lido.

De parágrafo em parágrafo sentimos o impulso de pegar o celular para checar se há algo novo. Então nos recordamos de que antigamente era tão fácil sentar e ler um livro por horas a fio, enquanto hoje, mesmo dispondo de tempo, não conseguimos realizar essa proeza.

Qual a primeira coisa que você faz quando acorda? Espreguiçar? O sinal da cruz? Ou você pega seu celular? Sei bem, eu também já fui assim. Acordava e, depois do sinal da cruz, a primeira coisa que pegava era o celular. Para ver as horas, era verdade. Mas também havia aquela sensação de urgência em checar as notificações.

O que teria acontecido no meu micro mundo virtual enquanto eu dormia? O que eu teria perdido das novidades? O que meus amigos e familiares teriam postado nesse tempo?

O celular deveria ser um meio para melhorar a nossa vida, contudo, ele parece nos atrapalhar bastante, além de nos deixar costumeiramente sem controle sobre o que fazemos nele e quanto tempo dedicamos ao seu uso.

Eu estava lendo “O Senhor dos anéis” (se você ainda não leu ou não assistiu aos filmes, não perca a oportunidade); e em uma das cenas em que Bilbo fala sobre o Um Anel, eu percebi como era uma excelente analogia a como usamos o celular atualmente.

Se recordarmos bem, não era Bilbo nem Gollum que possuíam o anel do poder, mas era o anel quem os dominava. “Um Anel para todos governar, Um anel para encontrá-los, Um Anel para todos trazer e na escuridão aprisioná-los na Terra de Mordor, onde as Sombras se deitam.” Bilbo estava para deixar o anel e partir para Valfenda e descreveu assim sua relação com ele:

“Mas senti-me muito estranho. E, ainda assim, de certo modo seria um alívio não me preocupar mais com ele. Ele tem dominado minha mente nos últimos tempos. Às vezes senti que era como um olho me fitando. E sempre quero pô-lo e desaparecer, você sabe; ou me pergunto se ele está a salvo, e o tiro do bolso para me certificar. Tentei trancá-lo, mas descobri que não conseguia descansar sem o ter no bolso. Não sei por quê. E parece que não sou capaz de me decidir.

A ciência já cunhou um termo para a sensação de não conseguir ficar longe do aparelho celular: chama-se nomofobia (uma abreviação, do inglês, para no-mobile phobia). É um problema com consequências psíquicas, sociais e físicas. Aqui no Brasil, o Instituto Delete é especializado neste assunto e presta atendimento gratuito para pessoas com dependência digital.

E sabe essa urgência que sentimos em checar o celular, como se a nossa ausência do mundo virtual fosse culminar na perda de algo importantíssimo? É o FOMO, uma sigla em inglês para fear of missing out, que é uma ansiedade em imaginar que as pessoas estejam tendo experiências mais satisfatórias do que a gente, ou que estamos perdendo algo incrível, ou que estamos ficando para trás quando não checamos as redes sociais.

Segundo uma pesquisa da Australian Psychological Society, 51% dos adolescentes realmente sentem ansiedade quando não têm certeza de onde estão seus amigos ou o que estão fazendo. É como se tivéssemos uma necessidade contínua de estarmos conectados.

Inclusive, muitas empresas se aproveitam dessas tendências para gerar a venda de novos produtos com a estratégia da escassez e da histeria. Quem nunca se deparou com aquela propaganda digital dizendo “o carrinho só estará aberto por 3 dias, uma oportunidade única e imperdível” somado ao “se não adquirir este curso você vai se dar mal”? Eu me deparo com isso constantemente. E se eu fosse me deixar levar por isso, teria comprado desde cursos sobre como pintar as unhas até sapatos ecológicos. Além de estar neurótica achando que minha família seria destruída por um cavaleiro apocalíptico se eu não aprendesse a cuidar do meu matrimônio e educar meus filhos com os gurus digitais.

Os momentos de tédio estão praticamente desaparecendo dos nossos dias, porque estamos mais do que habituados a preenchê-los com as novidades que chegam através das nossas redes sociais ou aplicativos de comunicação e entretenimento. Junto com o tédio, também estamos perdendo capacidade de memorização, concentração e até mesmo habilidades sociais.

Ao usar continuamente o celular temos mudanças de foco da nossa atenção todo o tempo. São horas diariamente gastas em treinar nossos neurônios a mudarem de foco de atenção constantemente. Os olhos ávidos em ver e o cérebro viciado em descarga de dopamina querem continuamente as novidades. Por isso você puxa seu feed inconscientemente esperando algo novo e nem sabe porque fez isso. Você começa a fazer algo e no meio da atividade volta para o celular e então para a atividade. Você pula de aplicativo em aplicativo por minutos, mesmo sabendo que não há nada de novo ali.

Até mesmo os textos de blogs estão ficando obsoletos para nossa atenção superficial. O cérebro desaprendeu a se aprofundar, a ler com continuidade e paciência. Hoje estamos mais passando os olhos do que lendo algo. Fica a impressão de que somos cultos mas a verdade é que estamos longe de sermos sábios ou até mesmo simples pessoas que tem uma boa memória.

Se estamos conversando com alguém, nossa cabeça pode estar continuamente nas nuvens e ignorando a realidade. Isso se não preferimos pegar o celular a dar atenção a quem está diante de nós. Até nossa atenção já foi mais exclusiva.

Talvez você nunca tenha parado pra pensar em nada disso e estava apenas nadando com a corrente, achando normal viver checando o celular e comprando tudo o que te oferecem os algoritmos. Por isso, este texto também é uma provocação para que a partir de agora você comece a se perceber e se policiar.

Se você resolver anotar em um bloquinho cada vez que checar o celular, certamente irá se surpreender ao fim do dia com a quantidade de risquinhos. Ou se colocar um aplicativo para contabilizar o tempo que você passa no celular, irá ficar chocado com o tempo que perde diariamente fazendo quase nada de útil ou de entretenimento de qualidade.

A nossa relação com a tecnologia é um dos grandes problemas atuais. E é importante nos darmos conta da grande influência e fascínio que o celular nos causa. Então procuraremos um uso equilibrado da tecnologia e buscaremos também ter momentos desconectados para ter uma boa saúde física, mental, afetiva, social e espiritual.

Os momentos de desconexão nos ajudam a descansar, a contemplar, a realizar tarefas com maior empenho e atenção, a desacelerar, a nos relacionarmos verdadeiramente com o outro, e tantas coisas que são necessárias na vida de todos nós.

E você, tem deixado o celular te dominar?

“Então confie em mim”, disse Gandalf. “Estou bem decidido. Vá embora e deixe-o para trás.”

Por um momento Bilbo ficou parado, tenso e indeciso. Por fim suspirou. “Muito bem”, prosseguiu com esforço. “Farei isso. (…) Não me importo. Não se preocupe comigo! Agora estou feliz como jamais estive, e isso quer dizer muita coisa. Mas a hora chegou. Estou sendo arrebatado, finalmente”.

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Terapeuta e Escritora

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