Espiritualidade

O dom da amizade

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As Sagradas Escrituras nos dizem que “um amigo fiel é um abrigo seguro! quem o achou, descobriu um tesouro.” (Eclo 6, 14). Ele “é mais precioso que o ouro e as joias”. (Sl 18,11). “um amigo fiel é um jardim fechado, uma fonte guardada”. (Ct 4,12). E “Um amigo fiel é um remédio de vida e imortalidade; quem teme o Senhor, achará esse amigo.” (Eclo 6, 16).

Um amigo é antes de tudo um dom de Deus, é Ele quem nos dá. Não somos nós que criamos as nossas amizades apenas com esforço humano. Por isso tantas vezes investimos esforços em relações que não vão pra frente embora humanamente tivessem tudo para prosseguir. Quando encontramos um amigo, pelo contrário, é como se tudo acontecesse sem esforço e paira um sentimento de identificação que parece ter muitas eras.

O amigo também é raro, como um tesouro. E como um jardim fechado, como uma fonte guardada, ele não somente é valioso, mas também espera e está preparado para ser encontrado. A sua presença é refrescante, aconchegante, segura, silenciosa.

A raposa quando se encontra com o Pequeno Príncipe nos ensina algo sobre a amizade quando escreve que a primeira vista, os amigos são pessoas que passam despercebidas, “mas se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo. Mas, se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. Os teus me chamarão para fora da toca, como se fossem música.”

A raposa diz que cativar significa criar laços. A amizade é um amor de eleição, de cuidado e delicadeza. Um amor pessoal que ilumina e aquece, que conhece tão minuciosamente como os barulhos dos passos e que encoraja a sair da toca de si mesmo, a se unir, a se doar, a enfrentar a vida de forma leve e envolvente, como música.

“Parecia que tínhamos uma só alma em dois corpos. No nosso caso podia se afirmar que de fato cada um se encontrava no outro e com o outro”, escreveu São Gregório sobre sua amizade com São Basílio.

A amizade é um amor. Ela não é um contrato social, não é uma companhia no trabalho, não é um hábito, não é uma parceria, não é um interesse no que o outro pode me dar, não é um checklist de gostos iguais. A amizade é um amor. Ela é um encontro. Ela é um dom sobrenatural e ao mesmo tempo também é uma eleição.

Ser amigo é ter interesse, debruçar-se sobre a existência do outro apaixonadamente. Ter sim muito em comum, mas não tudo. A diferença enriquece! É sentir saudade, é querer passar tempo juntos, é querer saber do que acontece.

Ser amigo é querer prestigiar o outro. É ter orgulho de dizer que é amigo de tal pessoa. É elogiar, é apoiar, incentivar. E também é corrigir, exortar.

Amizade não é um encontro esporádico, mas sim uma dedicação. Ela requer tempo, intimidade, coração aberto. Requer a coragem de amar verdadeiramente quem o outro é, sustentando nas duras provas e também nas quedas, perdoando e pedindo perdão.

Requer a coragem de mostrar verdadeiramente quem se é. Sem medo de contar até os segredos mais secretos, confiantes de que naquele coração amigo há acolhimento, consolo, conselho. Ali se pode fazer morada.

Amigos permanecem nos tempos difíceis. E também nas alegrias. Desconfie de quem não se alegra com seu sucesso tanto quanto de quem some quando você está em uma tempestade. Amigos desejam sempre partilhar, dividir, são mãos constantemente estendidas e dadas, apertadas e carinhosas.

Sim, a amizade reclama carinho. Atenção, abraços, bilhetes, presentes, afeto, preces, declarações. Todo este enamoramento de almas que se querem bem.

Como disse certa vez o Papa Francisco, a amizade não é uma relação fugaz e passageira, mas uma sólida relação de afeto que nos faz sentir unidos. Ter um amigo nos ensina a amar. Nosso Senhor disse “já não vos chamo servos, mas amigos”. Que grande é a amizade.

Conta-se que os remendos da túnica de São Francisco foram feitos por Santa Clara, de seu próprio véu. A amizade entre eles mostra traços reais do plano de Deus para a relação entre homem e mulher, não do ponto de vista romântico e conjugal, mas sim, humano.

O fato de Clara remendar a túnica de Francisco mostra não só um amor delicado e cuidadoso, mas também que, por essência, a mulher tem os olhos voltados a identificar a necessidade dos outros. Já que foi criada da costela, a atenção da mulher não pousa sobre o mundo criado e as exterioridades, mas sobre as pessoas e o mundo interior.

Mas veja que o que é mais bonito é que a mulher, por constituição fundamental, é aquela que constrói com seu próprio ser. Ela que constrói a humanidade a partir de seu próprio ventre. Mas também é aquela que constrói todo e cada homem não só na carne, mas também no espírito, porque continuará “gemendo em dores de parto” por cada alma, dando de seu suor e sangue para construir os homens.

Remendar a túnica de quem se ama com o próprio véu é tão mais poético e profundo do que simplesmente passar linhas pela agulha, agulhas pelos panos e unir tecidos. É praticamente costurar uma vida na outra.

No relato da costura dos tecidos, narra-se que Clara usava pontos comuns e perfeitamente alinhados e precisos, apenas um ou outros pontos mais complexos. E a costura era tão bem feita e simples…

Não é isso a amizade? Um amor tão delicado e que busca o bem… um amor que cuida, que supre as necessidades humanas… e transcende. E ainda, praticamente não se nota, porque acabam se tornando um… o amor é ao seu modo um ato de dissolver-se no outro. “transforma-se o amador na coisa amada”, já cantava Camões. E então ambos divinizaram-se porque juntos amaram a Deus.

Clara não foi sombra de Francisco e tampouco a sua namorada, mas sim a sua complementariedade. Não foi sua serva, mas companheira. Clara brilhou com Francisco com toda a sua potência feminina.

Uma amizade assim tornou-se um escândalo em um mundo onde a palavra amor se reduziu ao erotismo e onde até mesmo dentro do casamento o homem desvirtuou o olhar sobre a própria esposa.

Contudo, uma amizade assim é reflexo do amor divino e totalmente possível no âmbito humano.

Terapeuta e Escritora

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