Ponto do Papa

O estilo de Deus

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PEP#1 Ponto de Espiritualidade do Pontífice

“O estilo de Deus é proximidade, compaixão e ternura.”  Encontramos esta frase em muitos dos Angelus, audiências, homilias e discursos do Papa Francisco. A repetição constante não é casual. O anúncio desta verdade está no centro do estilo pastoral de Francisco e encontra especial ressonância em um mundo que, de muitas formas, se esqueceu do amor de Deus.

Contudo a ênfase no amor divino não parte apenas do desejo de tocar uma humanidade ferida e distante de Deus, mas também de renovar a missão evangelizadora da Igreja. Não é raro encontrar uma ação pastoral dissociada do amor de Deus, que compreende a Sua Misericórdia como fraqueza, reduzindo a fé exclusivamente ao moralismo de esquemas rígidos. Também nesse sentido encontramos o extremo oposto, uma deturpação da compaixão divina como uma negação do pecado e liberação para o relativismo.

Nesse sentido, a intuição do pontífice é uma verdadeira iniciativa paterna. Somente quem se sabe amado é capaz de se sentir feliz, realizado e mudar de vida. É o amor o verdadeiro motor da mudança e também a base sólida de uma relação genuína com Deus. O medo, a rigidez e a ameaça são sentimentos insuficientes para uma conversão pessoal. Servem até determinado ponto e não sustentam uma conversão autêntica e profunda. Além de inibirem um avanço espiritual e, muitas vezes, causarem adoecimento nos indivíduos. Não podemos nos enganar, a fé pode ser deturpada e vivida de forma doentia nas suas expressões de fanatismo e extremismo. Também o laxismo não apresenta uma vivência plena e feliz da fé, porque, dentre outras coisas, aumenta o vazio existencial e coloca o próprio homem como centro da experiência relacional com Deus, vivendo assim refém de seus próprios instintos, ideias e desejos.

Dessa forma, o anúncio evangélico abraçado pelo pontífice parte de uma experiência pessoal e pastoral que também é marca do seu pontificado: a espiritualidade do encontro. Só é possível anunciar o amor de Deus quem o experimentou. Também a evangelização e a conversão não se dão por proselitismo (convencimento, ameaça ou coação), mas justamente através do encontro com Cristo. Bento XVI explicitou isso em uma de suas preciosas Encíclicas dizendo que “No início do ser cristão não há uma decisão ética, ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo 1

Vale recordar uma entrevista do Papa Francisco concedida ao Pe. Antonio Spadaro, situando-nos a respeito do contexto social que vivemos e a missão da Igreja hoje: «Vejo com clareza — continua — que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar alto. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de tudo o resto. Curar as feridas, curar as feridas… E é necessário começar de baixo. A Igreja por vezes encerrou-se em pequenas coisas, em pequenos preceitos. O mais importante, no entanto, é o primeiro anúncio: “Jesus Cristo salvou-te!”. E os ministros da Igreja devem ser, acima de tudo, ministros de misericórdia. O confessor, por exemplo, corre sempre o risco de ser ou demasiado rigorista ou demasiado laxista. Nenhum dos dois é misericordioso, porque nenhum dos dois toma verdadeiramente a seu cargo a pessoa. O rigorista lava as mãos porque remete-o para o mandamento. O laxista lava as mãos dizendo simplesmente “isto não é pecado” ou coisas semelhantes. As pessoas têm de ser acompanhadas, as feridas têm de ser curadas».2

A chamada às ações de misericórdia também são parte do estilo pastoral de Francisco. Descobrimos ao aproximarmo-nos dos seus escritos que ser misericordioso é uma expressão inata do coração do Pontífice e que, para nós, é um lembrete de como Deus é e um convite a sermos sua imagem e semelhança.

Não esqueçamos que o estilo de Deus reside em três palavras: proximidade, compaixão e ternura. Deus está sempre próximo, é sempre compassivo, sempre terno. E o testemunho cristão deve seguir este caminho: de proximidade, de compaixão, de ternura. E ele era assim, manso e terno. 3

Ele cumpre a Boa Nova que anuncia: Deus fez-se próximo na nossa vida, tem compaixão pelo destino da humanidade ferida e vem derrubar todas as barreiras que nos impedem de viver a relação com Ele, com os outros e connosco mesmos. Fez-se próximo… Proximidade. Recordai-vos bem desta palavra, proximidade. Compaixão: o Evangelho diz que Jesus, quando viu o leproso, sentiu compaixão por ele. E ternura. Três palavras que indicam o estilo de Deus: proximidade, compaixão, ternura.4

E qual é o estilo de Deus? Nunca vos esqueçais: o estilo de Deus é proximidade, compaixão e ternura. O nosso Deus está próximo, é compassivo e terno. Em Jesus vemos este estilo de Deus. Com este seu estilo, Deus atrai-nos a si. Ele não nos toma com a força, não nos impõe a sua verdade e justiça, não faz proselitismo conosco, não: quer atrair-nos com amor, com ternura, com a compaixão. (…) Deus encontrou o meio para nos atrair como somos: com o amor. Não um amor possessivo e egoísta, como infelizmente é muitas vezes o amor humano. O seu amor é puro dom, pura graça, é tudo e apenas para nós, para o nosso bem. E assim atrai-nos, com este amor desarmado e também desarmante. Pois quando vemos esta simplicidade de Jesus, também nós deitamos fora as armas da soberba e vamos ali, humildes, pedir salvação, pedir perdão, pedir luz para a nossa vida, para poder ir em frente. Não vos esqueçais do trono de Jesus: a manjedoura e a cruz, eis o trono de Jesus. 5

Mas o que significam <proximidade, compaixão e ternura>? O próprio Papa nos explica:

  1. Proximidade:

Eis a primeira coisa a dizer às pessoas: Deus não está distante, é Pai. Deus não está distante, é Pai, conhece-te e ama-te; quer dar-te a mão, até quando percorres caminhos íngremes e acidentados, até quando cais e tens dificuldade em levantar-te e retomar o caminho; Ele, o Senhor, está aí, contigo. Aliás, muitas vezes, nos momentos em que te sentes mais frágil, podes sentir a sua presença mais forte. Ele conhece o caminho, Ele está contigo, Ele é o teu Pai! Ele é o meu Pai! Ele é o nosso Pai!

Detenhamo-nos nesta imagem, porque anunciar Deus próximo significa convidar a pensar como uma criança que caminha segurando a mão do pai: tudo lhe parece diferente. O mundo, grande e misterioso, torna-se familiar e seguro, pois a criança sabe que está protegida. Não tem medo e aprende a abrir-se: encontra outras pessoas, encontra novos amigos, aprende com alegria coisas que não conhecia, e depois volta para casa e conta a todos o que viu, enquanto aumenta nela o desejo de crescer e fazer as coisas que viu o pai fazer. É por isso que Jesus começa por aqui, é por isso que a proximidade de Deus é o primeiro anúncio: permanecendo próximos de Deus, vencemos o medo, abrimo-nos ao amor, crescemos no bem e sentimos a necessidade e a alegria de anunciar! 

Se quisermos ser bons apóstolos, devemos ser como as crianças: sentar-nos “no colo de Deus” e, dali olhar para o mundo com confiança e amor, para testemunhar que Deus é Pai, que só Ele transforma o nosso coração e nos dá aquela alegria e aquela paz que nós próprios não nos podemos dar.

Anunciar que Deus está próximo. Mas como o fazer? No Evangelho, Jesus recomenda que não se digam muitas palavras, mas que se façam muitos gestos de amor e de esperança em nome do Senhor; não dizer muitas palavras, mas fazer gestos: «Curai os doentes, diz, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios. Recebestes de graça, de graça dai» (Mt 10, 8). Eis o cerne do anúncio: o testemunho gratuito, o serviço. Digo-vos algo: fico sempre muito perplexo com os “paroleiros”, com o seu muito falar e nada fazer. 

Façamos aqui algumas perguntas: nós, que cremos no Deus próximo, confiamos n’Ele? Sabemos olhar para a frente com confiança, como uma criança que sabe que está no colo do pai? Sabemos sentar-nos no colo do Pai na oração, na escuta da Palavra, aproximando-nos dos Sacramentos? E por fim, abraçados a Ele, sabemos incutir coragem nos outros, fazer-nos próximos de quem sofre e está só, de quem está distante e até de quem nos é hostil? Eis a realidade da fé, é isto que conta!

2. Compaixão

A compaixão faz ver as realidades como são; a compaixão é como a lente do coração: nos faz entender realmente as dimensões. E no Evangelho, Jesus sente muitas vezes compaixão. A compaixão também é a linguagem de Deus. Não começa, na Bíblia, a aparecer com Jesus: foi Deus quem disse a Moisés “vi a dor do meu povo” (Ex 3,7); é a compaixão de Deus, que envia Moisés a salvar o povo. O nosso Deus é um Deus de compaixão, e a compaixão é – podemos dizer – a fraqueza de Deus, mas também a sua força. Aquilo que de melhor dá a nós: porque foi a compaixão que o levou a enviar o Filho a nós. É uma linguagem de Deus, a compaixão.

A compaixão, frisou o Papa na homilia pronunciada em espanhol, é «uma das virtudes, por assim dizer, um atributo que Deus possui». Isto é-nos narrado por Lucas no trecho evangélico (14, 1-6) proposto pela liturgia. Deus, afirmou Francisco, «tem compaixão; compaixão por cada um de nós; compaixão pela humanidade e enviou o seu Filho para a curar, regenerar, recriar, renovar». Por isso, prosseguiu, «é interessante que na parábola do filho pródigo, que todos conhecemos, se diz que quando o pai — imagem de Deus que perdoa — vê que o filho volta, sente compaixão».

«Deus sente compaixão» repetiu o Pontífice. E «com coração de Pai, entrega o seu coração por cada um de nós». Com efeito, «quando Deus perdoa, perdoa como Pai, não como um oficial judiciário que lê os actos de um processo e diz: “sim, na realidade pode ser absolvido por insuficiência de provas…”». Deus «perdoa-nos a partir de dentro, perdoa porque entrou no coração daquela pessoa».

A compaixão “não é um sentimento de pena” que se sente, por exemplo, quando vemos morrer um cachorro na rua: “coitadinho, sentimos um pouco de pena”, afirmou Francisco. Mas é “envolver-se no problema dos outros, é arriscar a vida ali”.

3. Ternura

Refletindo sobre este aspecto, o Pontífice quis evidenciar «duas caraterísticas desta compaixão»: a «mansidão» e a «ternura». De resto, o próprio Jesus diz: «Aprendei comigo que sou humilde e manso de coração». O Senhor, explicou Francisco, «era manso, não bradava. Não punia as pessoas. Era manso. Sempre com mansidão». Não significa que não se zangasse: pensemos, acrescentou Francisco, em quando viu o templo, a casa do seu Pai que se tinha tornado lugar de «shopping, para vender mercadorias», com quantos trocavam moedas e tudo o mais: «lá zangou-se, pegou o chicote e mandou todos embora. Mas porque amava o Pai, porque era humilde diante do Pai, teve aquela força. E as pessoas aplaudiram». Mas, fundamentalmente, Jesus caracterizava-se pela «mansidão: aquela humildade que não é agressiva, mas mansa».

Há outra caraterística, a ternura. Emerge claramente da narração evangélica. Quando Jesus viu a viúva, aproximou-se dela e disse: «Não chores». O Papa tentou imaginar a cena supondo que o Senhor não tenha tido um simples comportamento de circunstância: «Não. Ele aproximou-se, talvez tenha-lhe tocado os ombros, ou feito uma carícia. “Não chores”. Este é Jesus». E ele, acrescentou, «faz o mesmo conosco, porque está próximo, está no meio do povo, é pastor».

Também a cena sucessiva é significativa: «Depois, aproximou-se e tocou o féretro. Os portadores pararam. Em seguida disse: “Jovem, digo a ti: levanta-te!”. O morto sentou-se e começou a falar. Realizou o milagre». Também aqui sobressai a proximidade: Jesus não diz simplesmente «Festejai, adeus». Não, acompanhou o jovem «restituindo-o à sua mãe”. Um gesto de ternura». A mesma ternura que se encontra no episódio de Jairo: depois de ter ressuscitado a jovem, Jesus preocupou-se «Dai-lhe de comer, tem fome». Sobressai claramente «a ternura de saber as coisas da vida».

Este era Jesus: «humilde e manso de coração, próximo do povo, com capacidade de sentir pena, com compaixão e com estas duas caraterísticas: mansidão e ternura». E sobretudo, frisou Francisco, o que Jesus «fez com aquele jovem, com a mãe viúva, faz também com todos nós, com cada um de nós quando se aproxima».

Para finalizar, recordemos a mensagem do Papa “Rumo à presença plena” onde escreve que “Compartilhando o Pão da Vida, aprendemos um “estilo de partilha” com Aquele que nos amou e se ofereceu por nós (cf. Gl 2, 20). Este estilo reflete-se em três atitudes – “proximidade, compaixão e ternura” – que o Papa Francisco reconhece como caraterísticas distintivas do estilo de Deus. Na sua ceia de despedida, o próprio Jesus nos assegurou que o sinal distintivo dos seus discípulos consistiria em amar uns aos outros como Ele os amou. Por isso, todos são capazes de reconhecer uma comunidade cristã (cf. Jo 13, 34-35). 6

No fim deste primeiro Ponto de Espiritualidade do Pontífice, fica-nos a reflexão sobre a nossa relação com Deus e com o próximo. Como compreendo a Deus em minha vida? Um carrasco, um vigia, um punidor? Um Deus próximo ou distante? Um pai amoroso ou um pai ausente? Como me relaciono com Deus? Como me relaciono com o próximo? Como transmito Deus aos irmãos? Através do proselitismo, da força, da violência, da má educação? Através do relativismo? Através de uma indiferença, transformo Deus em apenas uma ideia e fujo do verdadeiro encontro com Ele e com o próximo?

O primeiro passo que Deus dá na nossa direção é de um amor antecipado e incondicional. Deus ama primeiro. Deus não nos ama porque em nós existe um motivo que suscita amor. Deus ama-nos porque Ele próprio é amor, e por sua natureza o amor tende a difundir-se, a doar-se. Deus não relaciona nem sequer a sua benevolência à nossa conversão: pode ser que esta seja uma consequência do amor de Deus. São Paulo diz de maneira perfeita: «Deus demonstra o seu amor para connosco no facto de que, enquanto ainda éramos pecadores, Cristo morreu por nós» (cf. Rm 5, 8). Enquanto ainda éramos pecadores. Um amor incondicional. Estávamos “distantes”, como o filho pródigo da parábola: «Quando estava ainda distante, o seu pai viu-o, sentiu compaixão…» (Lc 15, 20). Por amor a nós Deus realizou um êxodo de Si mesmo, para vir ter conosco nesta terra por onde era insensato que Ele transitasse. Deus amou-nos até quando estávamos enganados. 7

Referências:

1 Deus caritas est (25 de dezembro de 2005) | Bento XVI (vatican.va)

2 Entrevista ao Papa Francisco realizada pelo padre Antonio Spadaro diretor da revista “Civiltà Cattolica” publicada no L’Osservatore Romano de 21 de setembro de 2013 | Francisco (vatican.va)

3 Audiência Geral de 18 de outubro de 2023 – Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 23. São Charles de Foucauld, coração pulsante de caridade na vida oculta | Francisco (vatican.va)

4 Angelus, 14 de fevereiro de 2021 | Francisco (vatican.va)

5 Audiência Geral de 28 de dezembro de 2022 – O Natal com São Francisco de Sales | Francisco (vatican.va)

Proximidade, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/angelus/2023/documents/20230618-angelus.html

Compaixão, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/cotidie/2015/documents/papa-francesco-cotidie_20151030_capazes-de-compaixao.html

Ternura, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/cotidie/2018/documents/papa-francesco-cotidie_20180918_mansidao-ternura.html

6 Presença plena, Rumo à presença plena – Uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais (28 de maio de 2023), Dicastério para a Comunicação (vatican.va)

Carta Apostólica sobre a misericórdia, Carta Apostólica Misericordia et misera (20 de novembro de 2016) | Francisco (vatican.va)

7 Audiência Geral de 14 de junho de 2017 | Francisco (vatican.va)

Terapeuta e Escritora

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