A obediência cega e os grupos coercitivos
Costuma-se pensar que apenas pessoas em situação de vulnerabilidade psicológica ou social ingressam em grupos sectários e passam por abusos. Contudo, percebemos que boa parte de quem cai nessas ciladas são pessoas saudáveis e de boa vontade.
Antes de prosseguir é importante esclarecer que mesmo dentro da Igreja Católica nos deparamos com grupos sectários. O termo ‘desvios sectários’ foi proposto pelo prior da Grande Cartuxa, Dom Dysmas de Lassus, em seu livro ‘Los riesgos de la vida religiosa’. Este livro consagrou-se como um clássico devido à profundidade e à novidade que o autor discorre em sua obra, especialmente através do trabalho amplo de estudo e o acompanhamento das vítimas que o fundamenta. Você pode ler mais sobre a obra aqui e mais sobre o assunto aqui.
A questão dos desvios sectários é um problema significativo e urgente porque os grupos sectários, além de terem sua estrutura institucional funcionando de forma problemática, também apresentam um campo enorme de vulnerabilidade para situações abusivas e adoecimento mental de seus membros.
Os desvios sectários são grupos de pessoas, seja de fiéis leigos ou de religiosos, que, embora existam dentro do âmbito católico, apresentam o seu funcionamento com um padrão de seita. Podem ser movimentos, grupos, comunidades, institutos, associações, ligados a paróquias ou independentes, de cunho religioso ou laical, sejam no âmbito carismático ou mais tradicional.
São chamados desvios porque ao contrário das seitas que estão totalmente apartadas da Igreja Católica em si, esses grupos estão ligados à Igreja – seus organizadores e participantes são fiéis católicos, bem como a sua doutrina. Estes grupos apresentam problemas significativos em sua engrenagem institucional que possui um padrão disfuncional. A forma de atuar e de se organizar segue o padrão de funcionamento de uma seita. Todo o organismo comunitário replica e mantém – inconscientemente – este padrão.
Inevitavelmente esses grupos sofrem de uma interpretação errônea a respeito de valores como obediência, respeito, autoridade, sofrimento, consciência, afetividade, entre outros, e acabam perpetuando até mesmo um padrão abusivo e manipulador no modo de agir do grupo. Há uma diferença fundamental entre grupos que apresentam casos pontuais de abuso (seja de consciência, autoridade, espiritual ou sexual) e entre aqueles onde os casos de abuso são frequentes.
Nesses grupos onde os abusos acontecem com constância, embora não se tenha, na maior parte das vezes, uma noção clara de que o comportamento em si é abusivo (especialmente em relação à autoridade e consciência), isso não deixa de significar que estes erros estejam acontecendo. Além disso, como muitas vezes a forma de ação e pensamento do grupo se configura em um padrão sectário e abusivo/coercitivo, cria-se um ambiente propício para que casos e mais casos aconteçam e sejam totalmente acobertados.
Todo grupo sofre a tentação de tornar-se uma seita. Isso manifesta-se de forma contundente conforme o grupo começa a desenvolver um senso de elitismo, de auto referencialidade, de controle e vigilância sobre os membros, geralmente somado ao endeusamento de uma liderança forte (é comum que seja o fundador ou fundadora) e a uma idolatria por uniformidade total do grupo (em pensamento e comportamento). Instala-se então uma ojeriza pela diferença e tudo aquilo que fere a ideologia do grupo apresenta-se como uma ameaça vital – sejam ideias ou pessoas.
É de certa forma compreensível que pessoas em situação de vulnerabilidade psicológica ou social encontrem nesses grupos um lugar que simboliza segurança, proteção e afeto. Mas o que leva pessoas saudáveis a ingressarem em ambientes assim? O fato é que todos nós somos vulneráveis por natureza. Por sermos humanos toda relação de confiança e partilha é uma relação de abertura. E nesse espaço de abertura, estamos todos vulneráveis. É impossível evitar este espaço de vulnerabilidade, porque seria como viver em uma ilha, isolados e sozinhos. Todas as nossas relações autênticas e íntimas – amizade, amor romântico, parentalidade, acompanhamento, formação, direção espiritual, parentesco etc. – são relações que exigem abertura de si. Ademais temos intrinsecamente uma necessidade de pertença a um grupo. De nos sentirmos parte de algo, integrantes, especiais e identificados com uma rede comunitária seja ela familiar, amistosa ou religiosa.
Entretanto, somente o conceito de vulnerabilidade natural e pertencimento à comunidade não é suficiente para explicar o porquê de pessoas saudáveis caírem em ambientes coercitivos em contexto religioso. Essas mesmas pessoas que não adentram em relacionamentos amorosos e amistosos abusivos, que são seguras de si mesmas, que têm uma autoestima saudável também são vítimas de sistemas destrutivos dentro da Igreja.
No livro ‘Escapando del labirinto del abuso espiritual’, a autora Lisa Oakley nos traz uma hipótese parcialmente satisfatória. Ela escreve que quando uma pessoa experimentou durante a sua infância e adolescência um ambiente de controle e coação, ela fica adaptada a este estilo de vida e relacionamento com autoridades. Dessa forma, inconscientemente quando encontra este ambiente que oferece todas as respostas, que toma decisões por ela, que não aceita questionamentos, que possui rigidez e regras sem compreensão lógica, que pune e castiga, enfim, um ambiente de autoritarismo e obediência cega, ela se sente confortável.
Somado a isso também temos a boa vontade dos católicos e cristãos em geral, que por quererem uma vida de santidade, estarem muito bem-dispostos a isso e por não terem muita referência, ficam em uma posição de vulnerabilidade espiritual. Assim, entram mais facilmente em ambientes e relações abusivas dentro do contexto da Igreja por confiarem cegamente em pessoas e instituições que utilizam dessa confiança para abusarem.
Se queremos proteger aos nossos filhos e escaparmos nós mesmos de relações abusivas e desvios sectários dentro da Igreja – ou fora dela – é imprescindível rompermos com o equívoco que é a obediência cega. Estamos falando então de reconstruir as relações entre pais e filhos deixando de vez o autoritarismo, adicionando bastante afeto e formando o senso crítico.
A obediência cega produz pessoas inseguras e dependentes, sejam elas crianças ou adultos. Estimular que as pessoas pensem por si próprias e aprendam a organizar a própria vida dá muito mais trabalho, mas aumenta a habilidade para viver em um mundo cada vez mais complexo. Quando crianças precisamos passar pelo processo de construção da autonomia, que não significa fazermos tudo o que quisermos e não termos limites, mas sim nos tornarmos capazes de fazer as nossas próprias escolhas e arcar com as consequências delas, desenvolvendo assim o amadurecimento e o senso de responsabilidade.
Uma relação de obediência cega considera naturalmente a autoridade como superioridade. Nestas relações não há espaço para o diálogo e as perguntas são respondidas com frases prontas, humilhação ou punição. A autoridade aqui é justificada pela força ou pela posição e não pela construção autêntica do bem e do respeito. Muitas vezes a violência psicológica ou física é constantemente utilizada como expressão legítima desta autoridade, causando consequências prejudiciais nos indivíduos a curto e longo prazo. Sem dúvidas o contexto da vida consagrada implica questões específicas sobre o contexto da obediência, contudo nem mesmo neste lugar a autoridade deve ser construída sob o molde do autoritarismo.
Quando adultos, precisamos desconfiar de ambientes e relações onde não podemos expressar a nossa opinião, nossa identidade e nem fazer questionamentos para compreender o porquê das coisas. Mudar a referência pessoal que temos de obediência e autoridade, revisitando e ressignificando o nosso processo histórico de educação. E romper com a ideia de que é o outro quem sabe o que é melhor para mim. Isso implica colocar-se em uma posição de coragem diante da vida. A coragem de fazer perguntas, de dar limites e de permitir-se errar.
Terapeuta e Escritora