Psicologia,  Tecnologia

O show do eu

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As redes sociais inauguraram um novo modo de ser e estar no mundo. Ao proporcionarem a possibilidade do compartilhamento de si mesmo através de imagens e textos, romperam os limites entre o que é privado e o que é público. Permitiram então que as pessoas se exibam como em um espetáculo.

Paula Sibilia em sua tese de doutorado ‘O show do eu’ escreveu que “a rede mundial de computadores tem dado à luz um amplo leque de práticas que poderíamos denominar “confessionais”, pois permitem a qualquer um dar um testemunho público e cotidiano de quem se é. (…) gente considerada comum, como eu ou você – têm se apropriado das diversas ferramentas disponíveis online e as utilizam para expor publicamente aquilo que algum tempo atrás teria sido protegido por fazer parte da intimidade. Gerou-se, assim, um verdadeiro festival de vidas privadas que se oferecem despudoradamente aos olhares do mundo inteiro.

Ela prossegue: “É preciso que os outros tenham acesso a esse universo antes preservado por sólidas paredes e rígidos pudores, pois o olhar alheio deve legitimar a existência disso que se mostra, quantificando seu valor com as diversas manifestações interativas. (…) não surpreende que os sujeitos contemporâneos adaptem os principais eventos de suas vidas às exigências da câmera (…). Assim a espetacularização da intimidade cotidiana tornou-se habitual, com todo um arsenal de técnicas de estilização das experiências de vida e da própria personalidade para ficar bem na foto ou na fita.

Hoje vivemos o que a autora define como “o trânsito do segredo e da discrição em direção ao crescente exibicionismo. (…) Tem eclodido nos últimos anos um apetite voraz que incita tanto à exibição como ao consumo de vidas alheias.”. E é necessário nos questionarmos a respeito disso, afinal para a maioria é inevitável deixar de compartilhar boa parte de sua própria existência. O que estamos buscando com tamanha exposição?

Qual a nossa responsabilidade nesse escancaramento do que costumava ser a vida privada? É o questionamento que Sibilia nos faz. “Na sociedade do espetáculo não se aspira à catarse mas a mimesis – eu, você e todos nós, aspiramos ser cópias das celebridades, outra palavra cujo sentido deslizou de notável, adjetivo que designava pessoas que sobressaíram em algum campo: arte, política, ciências, para famoso, famosa, isto é, pessoa que aparece na mídia, principalmente na mídia de imagens. A regra que organiza essa sociedade é, na expressão irônica do autor, o que é bom aparece e, se aparece, é bom.”

Em paralelo aos reality shows, a vida moderna nas redes sociais assume um viés de indiscrição socialmente aceita. Boa parte do que se pensa, sente, vive é exibido dia após dia. Em alguns casos, por mimetização e normalização do comportamento. Se todo mundo faz, parece fazer sentido que eu faça também. Há uma pressão social que muitas vezes modela o nosso comportamento. Em outras situações, isso acontece por motivos inconscientes como a busca por atenção, por afeto ou a necessidade de validação externa. Sem contar o retorno financeiro que pode alimentar o exibicionismo como estilo de vida.

A professora Henriette Tognetti Penha Morato, do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP, informa que o uso intenso das redes sociais suga os usuários e leva a uma elaboração ficcional da realidade. Nas redes, as pessoas buscam alterar virtualmente o que não consideram satisfatório na vida real: “Cada um tenta dizer as coisas da maneira como vê e às vezes provoca para ver como é que vão reagir. É uma distorção criada para modificar a própria realidade com a qual não se está satisfeito ou criada para provocar alguma coisa”.

É também nesse sentido que Paula Sibilia indaga “Todas essas cenas da vida privada, essa infinidade de versões de você e eu que agitam as telas interconectadas pela rede mundial de computadores, mostram a vida de seus autores ou são obras de arte produzidas pelos novos artistas da era digital? (…) Os sujeitos mentem ao narrar suas vidas na web. (…) Os habitantes desses espaços montariam espetáculos de si mesmos para exibir uma intimidade inventada. Seus testemunhos seriam, a rigor, falsos ou hipócritas: em suma, não autênticos. Ou seja, enganosas auto ficções, meras mentiras que se fazem passar por pretensas realidades, ou então relatos não fictícios que pretendem explorar a ambiguidade entre um e outro campo.” 

O psiquiatra Cristiano Nabuco, coordenador do grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, informa que, quanto mais se busca a perfeição nas redes sociais e se negligencia a vida real, mais infeliz o usuário pode se sentir. “Oitenta e cinco por cento de todas as fotografias que são postadas são editadas. Isso é um problema, porque se desenvolve uma autoestima virtual e não pessoal, e quanto mais o indivíduo busca se equiparar a essa vida paralela, mais infeliz ele vai se sentir na vida real.

A hiperexposição nos distancia muito da realidade do que somos: mostramos apenas o melhor de nós mesmos, em uma exigência de felicidade permanente que deixa muito pouco espaço para o sofrimento subjetivo“, diz o psicanalista e psiquiatra Marcelo Veras, autor de ‘Selfie, Logo Existo’. Ele prossegue dizendo que ” estamos permanentemente sob os olhares de câmeras que implodiram o conceito de intimidade. Isso gera uma sociedade mais insegura narcisicamente e também com a falsa ilusão de que o olhar do outro é necessário para garantir sua existência. (…)  Consumimos objetos assim como consumimos relações. Nunca estamos satisfeitos. Em mídias como Instagram e Facebook, igualmente nos tornamos reféns de “likes” de pessoas que nos são totalmente desconhecidas, diferente de buscar apoio e mesmo de se mostrar amável apenas para um grupo de amigos. Tudo isso leva a um modo de ser que vai além do que (Zygmunt) Bauman definiu como modernidade líquida.

Como bem refletiu Theodore Dalrymple, “ninguém percebeu que a perda do sentido da vergonha significa a perda da privacidade; e a perda da privacidade significa a perda da intimidade; e que a perda desta última significa a morte da profundidade. Com efeito, não existe maneira mais eficiente de produzir pessoas mais rasas e superficiais do que as deixar viver vidas completamente expostas, sem a ocultação de nada.

Terapeuta e Escritora

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