Clichês terminadores de pensamento
Certamente você já ouviu frases como “quem obedece nunca erra”, “reza que passa”, “descansar só no Céu”, entre outras que são bem comuns em contexto religioso. Esse tipo de frase é considerado pela pesquisadora Amanda Montell como clichês terminadores de pensamento. São frases que são utilizadas para desencorajar o pensamento crítico.
Esses clichês não estão restritos ao âmbito eclesial. Muitas vezes são frases comuns utilizadas em nosso cotidiano de forma simples e com intuito de aliviar a angústia. Frases como “vai passar”, “não era para ser”, “tudo acontece no tempo certo”. Quando utilizadas de forma tranquila não apresentam grandes problemas. Em contexto religioso é comum encontrarmos frases assim associadas a argumentos espirituais. Elas podem ser ditas sem intenção negativa ou intencional, mas também acontece que grupos, lideranças ou pessoas manipuladoras servem-se delas para converter, condicionar e controlar os indivíduos. É aqui que mora o problema.
Também conhecidas como marcadores semânticos essas frases são utilizadas para descartar rapidamente qualquer tipo de oposição. Como elas possuem uma alta carga afetiva funcionam no cérebro como um sinal para descontinuar o raciocínio. O mecanismo psicológico por trás de frases assim é impedir que as pessoas pensem. Através do uso de frases simplórias e generalistas que embotam o raciocínio crítico os manipuladores conseguem reformular o pensamento dos indivíduos.
Como bem descreve Amanda em “A linguagem secreta do fanatismo”, é natural do ser humano querer evitar o desconforto interno. Muitas pessoas fazem isso voltando-se para figuras de autoridade para que elas digam o que é verdade e o que precisam fazer para se sentirem seguros. Jim Jones, líder da seita de Jonestown que levou ao maior suicídio coletivo da história, colecionava um repertório dessas frases de efeito que usava sempre que alguém questionava, demonstrava alguma preocupação que precisasse ser silenciada ou quando perguntas difíceis surgiam.
Essas frases prontas ou jargões funcionam como uma espécie de sedativo psicológico, trazendo uma espécie de alívio e tranquilização momentânea ao evitar o esforço de pensar. Funcionam como mantras, apaziguam. São frases altamente seletivas e fáceis de memorizar e expressar. Servem como alívio para o desconforto da dúvida e estimulam as pessoas a desconsiderarem os próprios instintos e percepções. Esses lemas aliviam a dissonância cognitiva que sofremos quando há aquela discordância desconfortável causada por pensamentos conflitantes.
Algumas dessas frases são mentiras e outras comportam meias verdades. O que todas elas tem em comum é que são pensamentos rígidos e generalistas. Tentam comprimir situações complexas em explicações simplistas. A intenção é que os indivíduos não pensem por si mesmos, mas segundo a própria interpretação da liderança/grupo/pessoa. Um verdadeiro abuso de consciência. Quando a linguagem usada faz com que você questione suas próprias percepções, seja no trabalho, na família ou na Igreja, isso é uma forma de gaslighting – um abuso psicológico.
Com o uso dessas frases parte-se da ideia de que a pessoa não é capaz de compreender algo mais elevado, também evita-se o conflito e na maior parte das vezes essas frases são utilizadas para acobertar abusos graves, tanto físicos quanto psicológicos. Muitas vezes distorcem ensinamentos para culpar as pessoas pelo que estão passando ou sofrendo, até mesmo se forem abusos. Para a liderança usar os marcadores semânticos facilita a dominação e submissão do indivíduo e poupa o trabalho de ter que garantir o diálogo. “É como ter uma resposta simples, lindamente embalada e pronta para dizer que não é preciso se preocupar (…) Esses clichês servem para esmagar o pensamento livre ao mesmo tempo que colocam o membro em seu lugar (inferior) e livra a barra dos líderes”, como bem descreve Amanda.
Esses pensamentos grudam na mente como se fossem verdades absolutas. Isso acontece porque quanto mais repetidos, mais são absorvidos. E principalmente porque são repetidos sem processar criticamente o teor dessas frases. Por conterem argumentos espirituais e/ou serem proferidos por alguém de autoridade ou em posição de liderança, as pessoas tendem a não questionar, aceitando essas meias verdades como algo absoluto. Além disso, em geral são frases motivadoras, que inspiram e soam tão legítimas que fica difícil pensar que podem fazer algum mal.
Em contextos abusivos encontramos as dúvidas e questionamentos como uma espécie de afronta, falta de virtude ou então como caracterização de falta de inteligência por parte do membro. Dessa forma, a submissão torna-se ainda mais constante, fácil e letal. O pensamento dos membros vai sendo reconfigurado de acordo com o que a liderança ou grupo pensam. E isso não diz respeito à doutrina católica, mas a ideologias próprias, pensamentos e interesses do próprio grupo.
Os clichês finalizadores de pensamento obscurecem a verdade, não favorecem o aprendizado nem o diálogo, adormecem a pessoa, embotam o raciocínio e causam sofrimento sem resolver as situações. Além de obviamente encorajar o viés de confirmação: aquela inclinação de procurar, interpretar, aceitar e relembrar informações que validem e fortaleçam nossas crenças (pensamentos) preexistentes enquanto ignoramos ou desqualificamos qualquer coisa que as contrarie. Grupos, líderes ou pessoas manipuladoras apresentam uma versão unilateral de informação que apoie sua ideologia, trabalhando ativamente para mascarar o que for contraditório ou desconcertante, selecionando informações e não permitindo dúvidas.
Esse sistema de condicionamento é tão forte que mesmo membros que se afastaram do grupo precisam lidar com esses pensamentos após anos e anos. É um duro trabalho de reestruturação cognitiva.
Alguns clichês em contexto católico
Como essas frases de efeito podem ser problemáticas? Quais erros elas podem ocultar? Quais outros sentidos elas podem trazer? Qual seria uma forma mais ampla de pensar sobre ela? Faça esse exercício sempre que se encontrar diante de um clichê finalizador de pensamento. Não pretendo esmiuçar por completo, farei apenas breves apontamentos ilustrando como essas frases podem abarcar manipulação.
Deus falou em meu coração: Pode acontecer, mas em geral essa frase é utilizada para impor algo. Há uma diferença entre aconselhar algo a alguém e entre induzir algo a alguém (seja um comportamento, um pensamento, uma atitude, uma escolha, etc). A doutrina da Igreja é clara quando diz que Deus fala a cada indivíduo no “santuário da sua própria consciência” e é um abuso de consciência tanto invadir a consciência do outro através de forçar a abertura (revelação de si) quanto através da imposição do próprio pensamento ao outro. Lideranças costumam usar muito essa frase para condicionar os membros.
Você só será feliz neste carisma: Você pode até ser ser infeliz neste carisma. Não há garantia. Você pode ser feliz em diversos outros carismas. Só a pessoa pode saber onde está sendo feliz. Em geral essa frase é utilizada para manter o indivíduo sob controle. Também é problemática porque aporta uma dose de predestinação e não de livre arbítrio.
Cada filho traz um pão debaixo do braço: Uma clássica confusão entre providência e irresponsabilidade. Deus cuida de nós, mas isso não nos exime de fazer escolhas responsáveis nem exclui as dificuldades que advém mesmo de boas escolhas. É uma forma poética de nos sentirmos cuidados por Deus, mas também pode ser uma transferência de responsabilidade para Deus em coisas que devemos fazer por nós mesmos. Se esse clichê fosse verdade não teriam tantas famílias com crianças morrendo de fome no mundo (já checaram as estatísticas?).
Quem obedece nunca erra: Quem obedece pode errar, quem manda pode errar. O erro faz parte da condição humana. É impossível passar ileso por ele. Essa fase é clássica para justificar abuso de poder, de autoridade e de consciência garantindo que o indivíduo nunca questione e então se submeta a qualquer coisa.
Se sair da comunidade se condenará: Pensamento catastrófico super eficiente para manter a pessoa refém do grupo/líder coagida pelo medo, insegurança, ansiedade. Sair de algum grupo católico não condena ninguém automaticamente ao inferno. Inclusive pode-se ir para o inferno mesmo participando dos grupos. Estar salvo ou não tem a ver com mandamentos, sacramentos, pecado grave, etc. Não tem a ver com participar de grupos católicos.
O fundador é o carisma: O fundador recebe a graça fundacional, mas ele não é o portador do carisma, ele não tem posse sobre ele. O carisma é um dom de Deus para a Igreja. Indico a leitura deste artigo: Vista de La presencia innombrada. Abuso de poder en la Vida Consagrada (uc.cl)
Tudo o que fazemos é pelo seu bem: Depende, pode-se fazer o mal acreditando que se faz o bem. Pode-se fazer o mal dizendo que se faz o bem.
Tudo no tempo de Deus: Sim, desde que isso não seja utilizado para manipular as pessoas.
No amor não há cansaço: Há sim, mas o amor ajuda a sobrepujar o desgaste. Contudo, é comum utilizar essa frase para justificar uma rotina extenuante e exploração dos indivíduos, estimulando uma falta de autocuidado e de limites adequados para a própria saúde. Como amar e servir aos outros se primeiro não nos amamos e cuidamos? Há uma diferença e abismo entre auto cuidado e entre egoísmo.
Isso é egoísmo: Depende. Mas será que é sempre o líder quem sabe o limite do meu próprio egoísmo ou não? Em geral essas frases são utilizadas para causar descrédito e desconfiança em si mesmo lesando a autoestima do sujeito e favorecendo que o líder seja quem manipule e interprete as situações para seu próprio interesse. O indivíduo passa a apenas desconfiar de si mesmo, adoecendo psicologicamente e ficando refém do líder.
Você dá o primeiro passo e Deus coloca o chão: Comum de ter utilizado para justificar imprudência, negligência e falta de responsabilidade. Há sempre uma dose de mistério nas decisões, faz parte da vida. Mas cabe a nós fazer o que está nas nossas mãos, como está na parábola dos construtores.
Um dia você vai entender: Essa é ótima para garantir aquele senso de elitismo, quase como a história do Rei está nu. “Só os inteligentes podem ver a roupa do rei”. Também é muito utilizada para fugir de perguntas difíceis, para não esclarecer as coisas, para justificar abusos, etc.
É justo que muito custe o que muito vale: Sim, desde que não seja para justificar manipulação e outros tipos de abuso. Precisa discernir.
Isso é perseguição: Às vezes é mesmo. Mas na maior parte das vezes faz parte do discurso manipulador a dinâmica do nós versus eles, onde o grupo/líder estão sempre sendo perseguidos em vez de ter o mínimo senso de auto crítica.
Cuide das coisas de Deus e Ele cuidará das suas: Muito utilizada para justificar irresponsabilidades, por exemplo que casais com filhos cuidem menos da família para cuidarem mais da missão da comunidade.
Se você não está sofrendo não está fazendo certo: A lógica do sofrimento permeia grande parte do pensamento religioso de uma forma disfuncional. Essa frase demonstra a ideia de uma espiritualidade masoquista onde apenas a dor tem o lugar de honra e merecimento. Deus se servir do sofrimento não significa que Ele deseja ou se alegra quando sofremos. É quase uma ideia de que ser feliz é algo impossível, indesejável ou não relacionado à santidade. “Gaudete et exsultate”: Exortação Apostólica sobre a chamada à santidade no mundo atual (19 de março de 2018) | Francisco (vatican.va)
A revolução da ternura – Rayhanne Zago
Os laços do Espírito são maiores do que os de sangue: Excelente método de isolamento do indivíduo para torná-lo refém do próprio grupo.
Deus permitiu: Sim, desde que não seja utilizado para justificar manipulação e outros tipos de abusos.
Não está rezando o suficiente: Pode ser, mas nem tudo é sobre oração. Pessoas que rezam também tem depressão, por exemplo. Pessoas que rezam também cometem crimes, como sacerdotes pedófilos, por exemplo.
Reza que passa: Pode ser, mas depende do quê se está falando. Em geral essa frase é utilizada para evitar resolver o que está em jogo.
Aceite a sua cruz: Sim, desde que não seja utilizado para justificar manipulação e outros tipos de abusos. Precisa discernir sobre cada cruz e se responsabilizar pelas mudanças que estão em nossas mãos e que podem e devem ser feitas.
A voz das autoridades é a voz de Deus: Depende. E se a autoridade pede algo contrário ao que Deus pede? Por exemplo uma exigência sexual imoral? E se a autoridade pede algo que substitui a consciência do indivíduo, como decidindo com quem ele vai se casar? E se a autoridade pede algo que prejudica o indivíduo, como que ele não tome medicação prescrita pelo psiquiatra ou que permaneça em uma missão que o está adoecendo a ritmo rápido? A autoridade com legítima intérprete da voz de Deus está circunscrita ao âmbito da função e nunca de modo arbitrário ou irrestrito. Está bem claro nesse documento: O serviço da autoridade e a obediência (vatican.va) . Em geral isso é utilizado para dominar os indivíduos e se aproveitar deles. Também é preciso observar o exercício da sinodalidade. E mesmo em contexto de função a autoridade pode errar porque ela não é literalmente a voz de Deus. Dessa forma, como ser humano também pode se equivocar.
A comunhão só será plena quando você disser tudo o que pensa: Isso é forçar a abertura de consciência, um abuso psicológico bem comum que retira o direito de intimidade do indivíduo.
Você questiona porque é orgulhoso: Pode ser, mas em geral é uma forma fácil de impedir que os indivíduos perguntem de forma legítima e saudável.
Desconfie de si mesmo: É verdade que nem sempre pensamos o correto, mas isso jamais pode ser uma desculpa para transferir o esforço de pensar para outra pessoa.
Não seja refém de frases prontas, acostume-se ao pensamento rico e complexo.
O uso de clichês de pensamento só tem efeito se permitimos. As pessoas podem dizer o que quiserem, mas nós podemos escolher como receber dentro de nós o que as pessoas dizem. Precisamos questionar como nos relacionamos com as autoridades e como integramos dentro de nós mesmos uma auto estima saudável. Transferir para quem quer que seja a responsabilidade da nossa vida, seja de escolhas, de pensamentos, de comportamentos, é definhar e se infantilizar. Receber conselhos é bem diferente de esperar ou querer que os outros guiem nossa vida. Dar conselhos, orientar, formar é bem diferente de manipular.
Isso não significa uma postura de desconfiança irrestrita ou de auto referencialidade, mas simplesmente ter o senhorio de si mesmo. Não colocar ninguém em um pedestal. Não se esquivar do trabalho de pensar e decidir. Não esperar respostas prontas nem se saciar com frases breves e simplórias. Confiar que Deus habita o mais profundo de nós mesmos e todos somos capazes de acessá-Lo, sem a necessidade imperativa de alguém mediando essa relação que é estritamente pessoal.
Uma dica de exercício é anotar frases de efeito que você ouve com frequência, repete e acredita e tentar desmontá-las como se não acreditasse nelas. Isso flexibiliza o raciocínio, ajudando a ampliar o pensamento e a perceber as possíveis incongruências dos clichês finalizadores de pensamento.
Terapeuta e Escritora