Espiritualidade,  Psicologia

A família na prevenção aos abusos

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Dias atrás ouvi um sacerdote contar brevemente sobre seu ingresso no seminário. Ele relatava que quando estava saindo de casa rumo ao início da vida consagrada, seu pai, embora não fosse muito religioso, lhe apoiou e disse: “Vá e se não der certo, volte, que aqui você tem uma casa para voltar”. Além de achar belíssima a atitude desse pai, imediatamente me recordei das vítimas de abusos em contexto religioso ou espiritual. Afinal, um dos fatores que mais dificulta a saída das pessoas de uma dinâmica abusiva é não ter um lugar para ir, alguém para apoiar, alguém com quem contar.

Muitas vítimas permanecem ainda muito tempo suportando abusos por não terem forças e não saberem como sair/pedir ajuda e não por não identificarem os problemas do grupo ou a relação abusiva em que se encontram. É claro, muitas realmente permanecem presas à teia do grupo por ainda estarem iludidas. Contudo essa não é a realidade de todas elas.

Além dos sentimentos de vergonha, culpa e medo, especialmente as vítimas de grupos abusivos ficam em um estado de infantilização e incapacidade. A maioria delas está dependente emocional e financeiramente de grupo. Durante os anos em que passaram em tal organização foram se isolando dos amigos e da família, reféns do mecanismo de controle do grupo. Várias foram privadas de um desenvolvimento profissional e se alienaram do mundo, sem saber de forma prática como fazer coisas básicas (abrir uma conta no banco, pegar um meio de transporte, preencher currículos, utilizar o telefone, etc).

Somado à sensação de fracasso, as vítimas sentem-se desamparadas, não sabem se abrir (conversar) nem pedir ajuda. Temem ser rechaçadas, penalizadas e se sentem muito mal por terem se submetido aos abusos. Por terem passado um tempo significativo anulando a si mesmas através de argumentos espiritualizados propostos pelos líderes, as vítimas desenvolvem uma baixa autoestima, desaprendem a ouvir a si mesmas e a pensar criticamente.

Durante o tempo em que a vítima passa no grupo ou relação abusiva, ela é quebrada física e mentalmente para se tornar altamente vulnerável às sugestões e desejos do grupo e seu líder. O resultado final é uma mudança de personalidade. A nova personalidade é incapaz de raciocinar, escolher, avaliar criticamente e depende do grupo para interpretar a realidade. Tendo perdido a liberdade de escolha, as vítimas simplesmente fazem tudo o que for ordenado pelo líder e anulam a si mesmas até ao ponto de adoecerem, não saberem mais quem são e, lamentavelmente, pensar ou tentar suicídio.

Quando a vítima acorda e se dá conta de como foi manipulada ou de como está doente, para que ela possa sair da influência do grupo e caminhar para a liberdade ela precisa de muita força interior. Esse caminho torna-se menos árduo e mais rápido quando a vítima possui vínculos externos ao grupo (trabalho, amigos, família, etc). É essencial para ela se sentir acolhida. Por isso, é demasiado importante a família e amigos deixarem claro que a pessoa pode contar qualquer coisa, que sempre terá apoio e ajuda, que as portas estão abertas. Mesmo quando essa vítima se afasta, quando arma suas posturas defensivas, quando se isola. Acreditem, ela não faz isso por não amar as pessoas queridas. Ela faz isso porque é induzida e manipulada. Ela nem se dá conta do que está acontecendo.

A maioria das pessoas não tem ideia quando está submetida a abusos em um contexto religioso ou espiritual. Esses abusos são perpetrados por indivíduos que nunca seriam suspeitos de serem abusadores. Reconhecer que fez parte de uma dinâmica abusiva é um processo. O abuso psicológico e espiritual não deixa hematomas. Não há ossos quebrados. Não há lesões visíveis. Todas as feridas estão dentro do sobrevivente.

As vítimas precisam de apoio: serem ouvidas e compreendidas, serem amparadas. Receberem ajuda emocional, terapêutica, espiritual, financeira. Algumas podem precisar de suporte prático básico para encontrar um lugar para morar, ajeitar documentos, encontrar um emprego ou buscar qualificações educacionais.

A família e a obediência cega

Costuma-se pensar que apenas pessoas em situação de vulnerabilidade psicológica ou social ingressam em grupos sectários e passam por abusos. Contudo, percebemos que boa parte de quem cai nessas ciladas são pessoas saudáveis e de boa vontade.

É de certa forma compreensível que pessoas em situação de vulnerabilidade psicológica ou social encontrem nesses grupos um lugar que simboliza segurança, proteção e afeto. Mas o que leva pessoas saudáveis a ingressarem em ambientes assim? O fato é que todos nós somos vulneráveis por natureza. Por sermos humanos toda relação de confiança e partilha é uma relação de abertura. E nesse espaço de abertura, estamos todos vulneráveis. É impossível evitar este espaço de vulnerabilidade, porque seria como viver em uma ilha, isolados e sozinhos. Todas as nossas relações autênticas e íntimas – amizade, amor romântico, parentalidade, acompanhamento, formação, direção espiritual – são relações que exigem abertura de si. Ademais temos intrinsecamente uma necessidade de pertença a um grupo. De nos sentirmos parte de algo, integrantes, especiais e identificados com uma rede comunitária.

Entretanto, somente o conceito de vulnerabilidade natural e pertencimento à comunidade não é suficiente para explicar o porquê de pessoas saudáveis caírem em ambientes coercitivos em contexto religioso. Essas mesmas pessoas que não adentram em relacionamentos amorosos e amistosos abusivos, que são seguras de si mesmas, que têm uma autoestima saudável também são vítimas de sistemas destrutivos.

No livro ‘Escapando del labirinto del abuso espiritual’, a autora Lisa Oakley nos traz uma hipótese parcialmente satisfatória. Ela escreve que quando uma pessoa experimentou durante a sua infância e adolescência um ambiente de controle e coação, ela fica adaptada a este estilo de vida e relacionamento com autoridades. Dessa forma, inconscientemente quando encontra este ambiente que oferece todas as respostas, que toma decisões por ela, que não aceita questionamentos, que possui rigidez e regras sem compreensão lógica, que pune e castiga, enfim, um ambiente de autoritarismo e obediência cega, ela se sente confortável.

Além disso, pessoas que cresceram em ambientes abusivos, vindo de um contexto familiar problemático, violento e difícil também tendem a sentir uma familiaridade quando ingressam em grupos abusivos. Esse sentimento de algo familiar não é por ser saudável nem se sentir seguro, mas apenas o conforto do conhecido.

Sabemos bem que durante a vida adulta caminhamos inconscientemente pelo solo da infância. Dessa forma, se queremos proteger as crianças é imprescindível rompermos com o equívoco que é a obediência cega e o estilo abusivo de educar. Estamos falando então de reconstruir as relações entre pais e filhos deixando de vez o autoritarismo, a violência física, adicionando bastante afeto e formando o senso crítico.

A obediência cega produz pessoas inseguras e dependentes, sejam elas crianças ou adultos. Estimular que as pessoas pensem por si próprias e aprendam a organizar a própria vida dá muito mais trabalho, mas aumenta a habilidade para viver em um mundo cada vez mais complexo. Quando crianças precisamos passar pelo processo de construção da autonomia, que não significa fazermos tudo o que quisermos e não termos limites, mas sim nos tornarmos capazes de fazer as nossas próprias escolhas e arcar com as consequências delas, desenvolvendo assim o amadurecimento e o senso de responsabilidade.

Uma relação de obediência cega considera naturalmente a autoridade como superioridade. Nestas relações não há espaço para o diálogo e as perguntas são respondidas com frases prontas, humilhação ou punição. A autoridade aqui é justificada pela força ou pela posição e não pela construção autêntica do bem e do respeito. Muitas vezes a violência psicológica ou física é constantemente utilizada como expressão legítima desta autoridade, causando consequências prejudiciais nos indivíduos a curto e longo prazo. Sem dúvidas o contexto religioso e espiritual implica questões específicas sobre o contexto da obediência e hierarquia, contudo nem mesmo neste lugar a autoridade deve ser construída sob o molde do autoritarismo.

Quando adultos, precisamos desconfiar de ambientes e relações onde não podemos expressar a nossa opinião, nossa identidade e nem fazer questionamentos para compreender o porquê das coisas. Mudar a referência pessoal que temos de obediência e autoridade, revisitando e ressignificando o nosso processo histórico de educação é fundamental. E precisamos urgentemente romper com a ideia de que é o outro quem sabe o que é melhor para mim. Isso implica colocar-se em uma posição de coragem diante da vida. A coragem de fazer perguntas, de dar limites e de permitir-se errar.

As crianças e os grupos abusivos

Todo menor de idade é vulnerável. Qualquer grupo religioso que se aproveite dessa fragilidade própria da idade para trazer um menor de idade para sua causa está fazendo aliciamento de menores. Um menor de idade não tem capacidade de discernimento, não tem aparato psíquico para tomar uma decisão vocacional. Muitos pais pensam que estão fazendo um bem enviando seus filhos para grupos assim, mas não sabem o quanto essas crianças estão sendo vítimas de abusos físicos e psicológicos, sendo privados de um desenvolvimento saudável, sendo alienados da sociedade e da cultura e sendo induzidos a nutrir ódio pelos seus próprios pais.

A fase de infância e adolescência são períodos cruciais para o desenvolvimento do indivíduo e a família ainda é a primeira instância necessária e responsável para esse individuo crescer e se desenvolver – até que se prove o contrário (vamos deixar esse trabalho de identificar famílias negligentes e abusivas para o conselho tutelar). Se antes essa prática de enviar filhos para grupos religiosos em tenra idade era considerada normal, hoje ela é vista como problemática e cheia de riscos. Infelizmente muitos grupos se aproveitam da vulnerabilidade dos menores não para proporcionar melhor educação, mas apenas para angariar indivíduos para sua própria causa.

Quanto mais jovens, menos resistência critica. Mais fácil de modelar o pensamento. E muito mais graves são os prejuízos, muitos chegam a nunca se recuperarem plenamente. A doutrinação de crianças em grupos sectários difere da de adultos, pois os cérebros delas ainda estão se desenvolvendo. Elas são como esponjas. Uma criança absorverá a visão de mundo daqueles ao seu redor e aceitará isso como sua realidade, porque isso é tudo o que ela conhece.

Nesse contexto, a criança aprende a não levar em conta suas próprias necessidades porque ela aprende rapidamente que elas não importam. Aprende a anular suas necessidades naturais de desenvolvimento. Isso significa que a criança perderá estágios normais de desenvolvimento, se não também educação e interações normais com colegas por causa do isolamento.

Manter uma criança isolada da sociedade também a torna mais vulnerável ainda a abusos sexuais, físicos, espirituais, emocionais e psicológicos. Grupos isolados criam suas próprias regras e decidem o que é certo ou errado. Nesses grupos as crianças são usadas como meios para o crescimento da seita. Não são encorajadas a desenvolver sua própria identidade. Quando a criança cresce e tem a sorte de deixar o grupo, ela ou ele terá que lidar com um longo processo de reconstrução ou recuperação de sua própria identidade. Tudo o que ela é foi atribuído ao culto ou existe por causa do grupo.

Em alguns grupos, os laços entre pais e filhos são ativamente rompidos pelo líder, que remove as crianças dos pais e as envia para escolas administradas pelo grupo ou as entrega a outros membros adultos para que as criem. Envergonhar os pais na frente dos filhos serve como outra maneira de enfraquecer o vínculo familiar. Crianças criadas nesses ambientes geralmente têm uma visão distorcida da família. Por exemplo, ao descrever o efeito de David Koresh e dos Branch Davidians no senso de família e identidade das crianças, Perry e Szalavitz (2007) escreveram o seguinte sobre seu trabalho com uma criança: “Seu desenho refletia o que ele havia aprendido no grupo: a elaboração de coisas que Koresh valorizava, o domínio de seu líder supremo, um senso de família confuso e empobrecido e uma imagem imatura e dependente de si mesmo”.

Como Whitsett e Kent notaram, “Em muitas situações de grupos abusivos, no entanto, onde as crianças recebem punição por questionar adultos (para não mencionar os líderes), elas aprendem rapidamente a suprimir o pensamento autônomo. Como consequência, o desenvolvimento cognitivo das crianças é atrofiado” (2003, p. 497). Os grupos abusivos ditam quais emoções são aceitáveis ​​e quais emoções os membros expressarão, com raiva e tristeza tipicamente não toleradas. Portanto, as crianças têm pouca experiência com autorregulação de emoções e afeto (Goldberg, 2006).

Dentro dos cultos, muitas vezes há uma demanda por perfeição absoluta. As consequências da falta de perfeição são imprevisíveis e muitas vezes severas. Há uma falta de modelagem consistente de compaixão e negociação não manipulativas. As crianças internalizam as visões severas do culto e do líder. Essa experiência combinada resulta na falta de uma consciência amorosa que reconheça e aceite a imperfeição inerente ao ser humano.

Grupos religiosos ou espirituais que demonstram interesse muito ativo em crianças já devem entrar no alerta dos pais. Se seu filho for convidado ou começar a frequentar algum grupo, pesquise o histórico desse grupo. Ouça pessoas que saíram dele, procure páginas de ex-membros. Isso é importante para que você tenha uma visão mais ampla e fique ciente dos riscos.

Fique de olho nas mudanças de comportamento das crianças (mais rígidas, ansiosas, tristes). Desconfie de grupos que fazem pressões sutis de segredo entre as crianças e os membros e pressões de ingresso na vida religiosa/grupo. Preste atenção ao molde comportamental que o grupo propõe, o quão exigente ele é, o quão perfeccionista.

Fique atento ao estilo de discurso que procura alienar as crianças do mundo e incutir medo. Que procura ser elitista. Há grupos que afastam as crianças dos pais, por isso é indispensável desenvolver relação de confiança com as suas crianças. Estar nos encontros e passeios, pedir relatos para as crianças. Conversar abertamente com elas sobre abusos.

Apoio em qualquer circunstância

Oh, I won’t be afraid
Just as long as you stand, stand by me

Relações autênticas, respeitosas, com afeto e cuidado não são apenas prevenção aos abusos, mas também reparação. As famílias desempenham um papel crucial nesse cenário visto que são a primeira escola de relacionamento e o constante refúgio durante toda a vida. Também são elas que preparam os indivíduos para a jornada da vida, tendo especial relevância no papel formativo contra possíveis abusos. É preciso falar claramente sobre eles. Mas antes de tudo é preciso revolucionar o seio familiar se comprometendo com a vivência mais profunda do amor, do respeito, da dedicação. Um espaço de confiança, de apoio, de crescimento e de segurança.

Para as vítimas de abusos em contexto religioso ou espiritual, a família e os amigos são relações insuperavelmente benéficas e reparadoras. Por isso, se você tem algum familiar ou amigo que passou por um abuso ou que está vivendo isso, acolha-o sem críticas e julgamento. Ofereça ajuda. Esteja por perto, dê bastante afeto.

Infelizmente ainda é a família o principal espaço aonde abusos acontecem. Dessa forma, contamos com uma fragilização social que parte de uma questão básica. O espaço que era para ser formador positivo do indivíduo serve para subjugá-lo. Não à toa muitos líderes religiosos e espirituais reproduzem as mesmas práticas que aprenderam em sua própria história de vida. Há uma normalização da violência e do desrespeito, da manipulação, do maltrato. Por isso é compreensível que não soe um alarme para os indivíduos que ingressam em dinâmicas abusivas. Isso não acontece apenas por causa do love bombing, mas também porque o abuso lhes é de algum modo familiar.

Terapeuta e Escritora

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