Crescendo compartilhados: uma reflexão sobre a privacidade das crianças
Utilizar a internet, especialmente as redes sociais, para documentar e compartilhar aspectos da vida dos filhos, experiências da maternidade ou paternidade é uma prática cada vez mais comum em nossos dias.
Sharenting
Talvez você nunca tenha ouvido o termo Sharenting, mas com certeza você conhece o que ele significa: o ato excessivo de postagens e compartilhamentos, por parte de pais e mães (ou outro adulto responsável), de imagens, histórias e informações pessoais de seus filhos em redes sociais.
Formado a partir da junção do verbo to share (compartilhar) com parte da palavra parenting (pais), o neologismo foi cunhado originariamente como orversharenting, em 2012,para nomear uma prática que, já naquela época, era recorrente e desmedida.
A exposição exagerada de informações sobre crianças representa uma ameaça à intimidade, vida privada e direito à imagem, como dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Somado a isso, todo conteúdo publicado na internet gera dados que, no futuro, podem ser desaprovados pelos filhos, por entenderem que sua vida privada foi exposta indevidamente durante a infância.
Esse é um fenômeno antigo que teve início com as estrelas mirins em Hollywood, nos anos 1920. Um dos casos emblemáticos é o do ator Jackie Coogan, que interpretou o garoto no filme The Kid (1921), dirigido por Charlie Chaplin. Além de astro de cinema, o menino se tornou uma estrela da publicidade após ser explorado por pelo menos uma década pelos pais. Ao atingir a maturidade, abriu um processo judicial contra os familiares em decorrência de toda a exploração da sua imagem, na época amplamente comercializada.
De lá pra cá não são poucos os casos de filhos de famosos ou de crianças que se tornaram famosas bem cedo através de algum trabalho e que, devido à exposição excessiva, chegaram a juventude e vida adulta e se afogaram em vícios e problemas psicológicos.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) alerta para os perigos e impactos de longo prazo desse hábito na vida dos menores.
“A criança e o adolescente não devem ter vida pública nas redes sociais. Não sabemos quem está do outro lado da tela. O conteúdo compartilhado publicamente por falta de critérios de segurança e privacidade pode ser distorcido e adulterado por predadores em crimes de violência e abusos nas redes internacionais de pedofilia ou pornografia, por exemplo”, explica a coordenadora do Grupo de Saúde Digital da SBP, dra. Evelyn Eisenstein.
Para a psicóloga e professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, Luciana Carla dos Santos Elias, são necessários limites e cuidados na hora de compartilhar fotos e vídeos da rotina dos pequenos. “É claro que dividir os momentos prazerosos e o desenvolvimento dos filhos com amigos e familiares pelas redes sociais é normal e tem um sentido em ser feito, porém, quando os pais começam a compartilhar esses conteúdos com centenas de pessoas desconhecidas, é preciso refletir sobre os perigos e também sobre o respeito à individualidade de suas crianças.”
Na última década, muitas crianças se tornaram “influencers” com status de celebridade, por meio de estímulo de familiares e o respaldo de patrocinadores. “Essas crianças constroem uma vida falsa, de imagens e não uma vida de experiências reais. E os pais estão colaborando para a construção de uma personalidade moldada para agradar a imagem que fazem da pessoa, ou seja, de um falso self. A criança começa a passar por essa situação desde pequena. Muitas vezes, por trás desse perfil falso pode existir um grande vazio. A exploração dessas crianças por parte dos pais é uma forma de abuso infantil”, apontou o coordenador do Grupo de Trabalho de Saúde Mental, dr. Roberto Santoro.
Segundo dr. Santoro, a exploração dos filhos engloba múltiplos aspectos como o interesse econômico e o narcisismo patológico. “Existe o ganho financeiro, que é evidente, o de ganhar dinheiro em cima da exploração dos filhos. Mas existe também uma questão de patologia do narcisismo. Isso significa que os pais realizam seus sonhos frustrados de sucesso, de projeção e de fama por meio dos filhos”, frisou.
Segundo especialistas entrevistados pelo jornal inglês The Guardian, além do grande estresse a que essas crianças estão submetidas ao serem foco constante de aprovação pública em rede social, também corre-se o risco de que elas não aprendam direito a discernir o que é público do que é privado.
“No Brasil não existe lei específica que proíba ou mesmo iniba os pais a controlar esse tipo de publicação. Mas o artigo 17 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) garante o direito à privacidade, à imagem e à autonomia aos pequenos cidadãos. Vale pensar sobre o assunto, portanto, e rever se o seu comportamento, como pai ou mãe, não está beirando ao Sharenting. Incentivar menos quem faz esse tipo de exposição com os filhos é outra medida que se pode tomar. Sim, todos gostamos de crianças sorrindo ou sendo espontâneas. Mas transformar a vida desses pequenos humanos em um Big Brother exclusivo deles parece mesmo não ser um bom caminho”, compartilhou em um texto o autor do site Consumidor Moderno.
Uma visão sobre a pessoa da criança
De acordo com o site Nexo, um simples clique na hashtag #meubebe no Instagram contém mais de 520 mil fotos e vídeos de crianças nas mais diversas situações: na praia, no banheiro, dormindo, comendo, fazendo gracinha ou algo embaraçoso, no banho, no carrinho, etc. Geralmente são fotos inocentes postadas por pais que querem dividir os momentos das vidas de seus filhos.
As crianças atuais compõem “a geração mais observada em toda a história“, nas palavras de Benjamin Schmueli e Ayelet Blecher-Prigat, num dos mais importantes artigos acadêmicos sobre privacidade infantil.
Uns dias atrás o ator Bruno Gagliasso compartilhou um vídeo de sua filha mais velha. Enquanto ele a gravava, ela olhava chateada e entediada, e pediu para o pai parar de fazer vídeos dela porque isso era chato. Isto fez o ator refletir que “a filha está crescendo e demonstrando opinião própria”. Mas se pararmos para pensar, a questão é bem mais profunda do que isso.
Não expor os nossos filhos não é só uma questão de se proteger contra gente ruim de todo o tipo e perigos desnecessários como fraude e roubo de identidade, mas sobretudo de resguardar a intimidade dos nossos filhos como pessoas que eles são.
Eles tem o direito de ter privacidade. Eles não nasceram para serem filmados escondidos e gerarem risadas em conhecidos e desconhecidos. É claro que não estou falando de algo que aconteça de vez em quando pra compartilhar por algum motivo com alguém querido, para edificar, para guardar de recordação, mas sim de: Você já imaginou que chato seria viver com alguém que pode a qualquer minuto te filmar por algo e compartilhar com quem quer que seja?
Sim, os nossos filhos são pessoas como nós. Eles tem seus gostos, suas ideias, sua própria personalidade e também seus direitos. É preciso exercitar este olhar que vê o filho não como uma extensão de si mesmo, mas como um indivíduo.
“As decisões não serão as mesmas para todas as famílias. Devemos pensar muito a respeito e tomar decisões bem informadas que se encaixem em nossos valores. (…) As famílias se beneficiam muito em compartilhar suas vidas online? Recebem apoio dos demais e aprendem? E certamente não quero silenciar as vozes dos pais. Mas existe um conflito intrínseco no que diz respeito às crianças: somos tanto os guardiões que mantêm as informações sobre nossos filhos protegidas e privadas, como os que decidem o que tornamos público e quando.
Outra pergunta a se fazer é: se publicassem isto sobre mim, será que eu iria gostar?
Essa vale em particular para pais que publicam fotos e vídeos dos filhos tendo ataques de birra, chorando ou se “portando mal”. Esses vídeos podem ser engraçados ou bem intencionados, mas, arquivados eternamente na internet, podem no futuro virar motivo de vergonha para as crianças.
Devemos pensar em como eles se sentirão quando abrirem nosso feed de redes sociais e virem o que foi postado sobre eles 10, 15 anos antes. E quando compartilhamos coisas que podem ser embaraçosas para eles, devemos pensar como nos sentiríamos se compartilhassem coisas do tipo sobre nós mesmos“, disse Stacey Steinberg, pesquisadora por anos do Sharenting.
Segundo uma pesquisa feita em 2017 na América Latina, quase 40% dos brasileiros entrevistados admitiam ter postado online fotos dos filhos em roupas íntimas, fraldas ou tomando banho.
“Antigamente, fotos espontâneas de crianças eram tiradas desajeitadamente, mas os pais preservavam e as compartilhavam em álbuns de fotos dentro de suas casas. Como profissional de cibersegurança, que passa muito tempo em redes sociais, fico impressionado com o que os usuários compartilham online e como estamos expondo nossos filhos a viverem um tormento no futuro“, afirmou, na época, em comunicado, Dmitry Bestuzhev, da Kaspersky Lab, empresa responsável pela pesquisa citada acima.
“Estamos chegando a uma civilização, sem tempo para refletir de que forma nos foi imposta uma espécie de impudor que nos convenceu de que a privacidade não existe”.
(José Saramago)
Uma questão jurídica sobre a pessoa da criança
Segundo o site Conjur:
“A Lei 9.069/90 assegura em relação aos direitos personalíssimos, que englobam o direito à imagem, à privacidade e à intimidade da criança. Esse entendimento pode ser extraído do artigo 100 dessa lei, que assim estabelece:
“Artigo 100 — Na aplicação das medidas [de proteção] levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas:
V – privacidade: a promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada”.
Assim sendo, partindo da ideia de que o legislador expressamente salvaguarda o direito à privacidade do menor, o constante e intenso compartilhamento de informações pessoais desse menor nas redes sociais de seus responsáveis fere diretamente os direitos personalíssimos dos quais crianças também são titulares, haja vista que, uma vez publicados, os dados pessoais ficarão eternamente disponíveis na sociedade da informação.
Outrossim, levando em consideração que a definição de privacidade pode ser variável de um indivíduo ao outro, justamente por depender do nível de exposição que cada titular desse direito está disposto a suportar, é imprescindível adotar uma postura meticulosa quando o objeto da exibição em questão não for decorrência do direito à privacidade do internauta que vai publicar determinado conteúdo, justamente por se tratar de uma privacidade de terceiro, que, na discussão em tela, trata-se do menor de idade.”
Menos telas não só para crianças
A acadêmica americana Stacey Steinberg, pesquisadora por anos do Sharenting, compartilhou em uma entrevista: “É irônico que tanto de nossa energia seja gasta em como nossos filhos usam as redes sociais e quanto tempo eles passam na internet, e raramente focamos em nosso próprio comportamento. Fazemos bem em pensar sobre o tempo de tela das crianças? Certamente é preciso estabelecer limites, mas também faríamos bem em olhar para nós mesmos, sobre o tempo e como nos portamos online e o que compartilhamos.”
Nós podemos passar a infância e adolescência inteiras dos nossos filhos privando-os de um contato com a tecnologia. Contudo, se nós não tivermos uma utilização com parcimônia, não adiantarão as restrições. O nosso exemplo de constante fixação nas telas será mais forte do que qualquer razão que dermos para eles não terem contato com elas.
Nós podemos inconscientemente ignorar que as telas nos prejudicam, construindo para nós mesmos uma narrativa que parece boa é justificável. Contudo, a realidade continua nos massacrando. Os prejuízos físicos, mentais, psicológicos e espirituais vão se instalando de forma sutil e se acumulando enquanto passamos o dia rolando as telas para lá e para cá. Enquanto a nossa mente passa dia após dia enquadrando momentos cotidianos ou pensamentos apenas para compartilhar. Enquanto nossa vida espiritual definha pela falta de interioridade . Enquanto nossa vida afetiva transforma-se em uma reatividade. Enquanto nossa saúde mental transforma-se em cansaço, ansiedade, impaciência, estresse e depressão.
Usar o celular com equilíbrio é um caminho necessário para todos nós nessa era tecnológica. Não é questão de voltar para as cavernas, mas de olhar sinceramente para si mesmo e entender como caminhar de forma ordenada. Porque podemos ter lindos discursos edulcorados e brilhantes, mas eles são apenas palavras ao vento se não se tornam ações concretas.
Inclusive, sabe aqueles momentos em que você está com a criança em casa, mas não larga o celular? Pesquisadores vêm estudando esse novo fenômeno, ao qual deram o nome de parentalidade distraída.
Para provar a percepção das crianças sobre a distração dos pais, a pesquisa anual State of the Kid, da Highlights Magazine, nos Estados Unidos, questionou os pequenos.
Meninos e meninas de 6 a 12 anos responderam à pergunta: “Seus pais estão sempre distraídos quando você está tentando conversar com eles?”. Em resumo, 62% das crianças disseram que sim. Sendo que 28% apontaram o celular como o objeto de distração, seguido pelos irmãos (25%) e pelo trabalho (16%).
Além disso, por estarem distraídos com o telefone celular, os pais têm a tendência de responderem aos seus filhos com mais severidade. Foi o que revelou um estudo realizado por Jenny Radesky, dos Estados Unidos.
Uma perspectiva humana
Submeter nossos filhos a uma vida sob o olhar das câmeras não só invade a sua privacidade, mas também os incita a construírem a normalidade como exposição e não como intimidade.
Se isso já é difícil para nós adultos que temos – ou deveríamos ter – uma noção formada do limite entre a privacidade e a exposição de si mesmo, imagine para uma criança que está ainda formando sua forma de entender e se relacionar com o mundo. Ela irá crescer achando normal se expor. Afinal, nós pais podemos ter um grande discurso sobre a importância do pudor, contudo são as nossas ações que modularão com maior intensidade os valores de nossos filhos.
Já foi comprovado por pesquisas – além de fácil de notar na prática – que as crianças acostumam-se com o fato de serem fotografadas e gravadas com constância e começam a perder a espontaneidade, a pedir para serem filmadas, a fazer coisas apenas para serem vistas.
Quando isso implica uma relação direta da criança com as redes, impacta ainda mais pelo fato de ela se habituar a modular sua auto estima pelos comentários ou críticas que recebe. Sem maturidade psicológica e espiritual para lidar com isso, e mais, com uma supervalorização do mundo virtual – que costuma ser bem cruel, elas tendem a ficar ansiosas e depressivas, com problemas de auto estima, viciadas em aprovação social. Não são mais raros, infelizmente, os casos de influencers infantis que se suicidaram após uma chuva de críticas.
Mais profundamente, não podemos deixar de refletir sobre as marcas mais interiores que deixamos neles, bem mais entranhadas e obscuras do que a superficial percepção de que nos orgulhamos deles e por isso os expomos. Como, por exemplo, o sentimento de objetificação e de interesse.
Estamos falando sobre Sharenting, mas também sobre o fato de que mesmo não compartilhando com outras pessoas, muitos pais tem a tendência a ficar gravando e fotografando tudo sobre seus filhos.
Nem tudo o que vivemos é armazenado na nossa memória, apenas as que o cérebro nota como profundas. Memórias profundas são aquelas que experimentamos várias sensações/emoções ou que nos geraram reflexão, em resumo, são aquelas em que estivemos de corpo e alma.
Você pode se entristecer ao notar que sua memória já não é mais a mesma e que grande parte das suas memórias de momentos importantes não existe ou quando você acessa, vê não o seu filho dando os primeiros passos, mas você olhando para a tela do celular e gravando.
A nossa memória está sendo transportada para o HD externo: nossa galeria de fotos e nossa timeline. Na ânsia de tudo lembrar, estamos perdendo algo essencial da nossa condição: a construção de uma narrativa interior que consolida o nosso ser. Não à toa há tantos casos de problemas mentais relacionados ao mau uso da internet e dos dispositivos: estamos nos tornando menos humanos e menos ainda nós mesmos. Se você conhece alguém com Alzheimer, sabe como é triste a condição da perda da memória. É algo que te descola da realidade e da história, da sua própria pessoalidade.
Estamos construindo uma timeline editável e cheia de filtros, com momentos selecionados pelo número de curtidas. E uma galeria de fotos cheia de imagens que pouco acessamos. De algum modo todo ser humano quer se tornar eterno e as câmeras fotográficas tem nos dado falsamente esse poder. O fato de querer tirar fotos e filmar tudo mostra a necessidade e tentativa de imortalizar ao invés de viver o momento presente. Há uma perda inevitável da consciência da finitude do ser. “Recordar é viver.” Contudo, recordar não é gravar nas câmeras, mas sim na memória.
A nossa existência não pode e nem deve estar construída sobre o jargão típico da nossa época: “o que não foi visto (compartilhado) não existiu”. A nossa existência não é consolidada, valorada e medida pelas visualizações e curtidas, mas sim pelos atos concretos que se unem como elos e construem a nossa vida sob o olhar divino.
Os filhos podem crescer acreditando que o contato e o convívio humano não são uma realidade necessária e deliciosa, se seus pais possuem apenas amigos virtuais e se os diálogos e convívio diário são continuamente interrompidos por uma checadinha na nova notificação.
Nossos filhos são tesouros e não vitrines. Velar pelo bem deles é um dos nossos maiores
“Ninguém percebeu que a perda do sentido da vergonha significa a perda da privacidade; e a perda da privacidade significa a perda da intimidade; e que a perda desta última significa a morte da profundidade. Com efeito, não existe maneira mais eficiente de produzir pessoas mais rasas e superficiais do que as deixar viver vidas completamente expostas, sem a ocultação de nada.”
(Theodore Dalrymple)
————-
Referências:
1- https://www.conjur.com.br/2021-jan-24/opiniao-implicacoes-juridicas-fenomeno-sharenting
4- https://mundoemcores.com/o-que-e-a-parentalidade-distraida/
Terapeuta e Escritora
Um comentário
Valéria
De fato precisamos reavaliar continuamente nossa relação com a internet. Percebo em minha vida quão mais difícil é memorizar informações importantes, mesmo relativas à minha profissão, apesar de alguma preocupação e vigilância quanto a isso já há algum tempo. Vejo também em meu redor as mudanças que vem ocorrendo, com adultos mas também com crianças, no que se refere ao excesso de uso. Agradeço pela compilação de pesquisas e posições aqui neste artigo, e por palavras autorais também muito oportunas. Deus abençoe!