Psicologia

Os desvios sectários dentro da Igreja Católica

Tempo de leitura: 17 minutos

No post passado compreendemos como funcionam as seitas. Sabemos bem que a Igreja Católica não é uma delas. Contudo, não escapamos de ter problemas. E as derivações sectárias são um deles. É sobre elas que iremos falar no post de hoje.

O que são os desvios sectários?

São grupos de pessoas, seja de fiéis leigos ou de religiosos, que embora existam dentro do âmbito católico, apresentam o seu funcionamento com um padrão de seita. Podem ser movimentos, grupos, comunidades, institutos, ligados a paróquias ou independentes, de cunho religioso ou laical.

São chamadas derivações ou desvios porque, ao contrário das seitas que estão totalmente apartadas da Igreja Católica em si, esses grupos estão ligados à Igreja porque seus organizadores e participantes são fiéis católicos. 

As derivações ou desvios sectários apresentam problemas significativos na estrutura do grupo que apresenta um padrão disfuncional. A forma de atuar e de se organizar segue o padrão de funcionamento de uma seita. Todo o organismo comunitário replica e mantém – inconscientemente – este padrão. 

Inevitavelmente esses grupos sofrem de uma interpretação errônea a respeito de valores como obediência, respeito, autoridade, sofrimento, consciência, afetividade e acabam perpetuando até mesmo um padrão abusivo e manipulador no modo de agir do grupo. 

Há uma diferença fundamental entre grupos que apresentam casos pontuais de abuso (seja de consciência, autoridade ou sexual) e entre aqueles onde os casos de abuso são frequentes. 

Nesses grupos onde os abusos acontecem com constância, embora não se tenha na maior parte das vezes uma noção clara de que o comportamento em si é abusivo (especialmente em relação à autoridade e consciência), isso não deixa de significar que estes erros estejam acontecendo. 

Além disso, como muitas vezes a forma de ação e pensamento do grupo se configura em um padrão sectário e abusivo/coercitivo, cria-se um ambiente propício para que casos e mais casos aconteçam e sejam totalmente acobertados. 

No livro “Los riesgos de la vida religiosa”, Dom Dysmas de Lassus, prior da Grande Cartuxa, discorre com maestria sobre essa questão especialmente voltada para os problemas nas novas comunidades. 

Tendo eu estudado vastamente este assunto tanto do ponto de vista psicológico quanto eclesial, a partir da ciência e também de testemunhos, e de minha própria experiência clínica acompanhando estes casos, quero alargar estas reflexões aos diversos âmbitos eclesiais. Porque este problema, embora seja mais comum em novas comunidades devido ao seu processo de fundação recente e inexperiência, também pode infectar ordens antigas através do consumo de conteúdo de internet e de alguns pensadores intelectuais (pensamentos sectários). Bem como perfeitamente se adequa aos casos de grupos de leigos, movimentos e de institutos. 

A questão das derivações sectárias é um problema significativo e urgente porque, além de terem sua estrutura institucional funcionando de forma problemática, também apresentam um campo enorme de vulnerabilidade para situações abusivas e adoecimento mental dos membros. 

Como Dom Dysmas podemos nos perguntar “Onde está o erro, já que essas comunidades, há alguns anos, foram apresentadas como o futuro da Igreja? Estaríamos errados em fazer essa avaliação? Por que essas comunidades particularmente fervorosas, marcadas por alta fertilidade e verdadeiro dinamismo, foram particularmente vulneráveis? É coincidência ou existe uma explicação? E, além disso, esses são os únicos com problemas? Não estamos todos ameaçados de uma forma ou de outra? A resposta a essas perguntas é muito simples: a vida religiosa traz riscos específicos.

Aqui estão algumas áreas de risco: 

Riscos relacionados ao exercício de autoridade (estrutura comunitária), à obediência, à vida espiritual, à clausura e à solidão.

Nem tudo nesses grupos deve ser rejeitado, pois a maioria apresenta coisas boas e pessoas bem intencionadas. O risco de um grupo se tornar uma derivação sectária fica maior caso o líder padeça de alguma doença mental (é bem comum o narcisismo), tenha uma compreensão errônea de conceitos fundamentais, retenha para si toda a responsabilidade de decisão e de gerenciamento do grupo, pense que é o único iluminado e capaz de conduzir o grupo bem. O processo de adoecimento de um grupo que começa bem, com vigor e frutos é bem sutil. Ele vai se deteriorando e corrompendo conforme vai se fechando mais em si mesmo.

Somado a isso temos a questão do fanatismo religioso, caracterizado pela devoção incondicional, exaltada e completamente isenta de espírito crítico. A tendência é que os grupos fanáticos se tornem cada vez mais fechados, isolados e extremistas.

Como funcionam as derivações sectárias?

Tratei do funcionamento das seitas no post anterior. Ele é de fundamental importância para compreender e identificar o funcionamento de alguns grupos dentro da Igreja Católica. 

Trago abaixo excertos do livro de Dom Dysmas com alguns mecanismos de funcionamento das derivações sectárias religiosas. Vocês irão notar que muitas coisas podem se aplicar também aos grupos de leigos.

As histórias reais são diversas, complexas e não podem ser reduzidas a um único esquema. No entanto, existem elementos comuns e gostaríamos de revelar alguns deles. A exposição não é exaustiva e o mais importante não são os detalhes de uma situação específica, mas os mecanismos e dinâmicas que os sustentam.

O carisma: No momento da fundação, por definição, tudo é novo e tudo deve ser criado. É normal que a figura do fundador seja preponderante, que passe por um processo considerável de testes antes de encontrar o seu caminho e, consequentemente, que haja mudanças regulares decididas apenas pelo fundador. Uma vez que a comunidade tenha crescido, o papel do fundador provavelmente terá crescido também, e o risco de funcionamento continuado da origem não é insignificante. Todas as decisões, todas as orientações partem do fundador que, considerado o repositório do carisma, corre o risco de permanecer a única referência da comunidade.

Uma dinâmica de grupo começa onde quase não há possibilidade de pensar diferente do fundador. O ciclo se fecha. Especificamente, ele recebe todos os poderes, ele é reconhecido como o único possuidor do Espírito Santo para guiar a comunidade e cada membro. Mas entende-se que, nesse processo, não é necessariamente o próprio fundador que teria se proclamado guru, pelo contrário, é a comunidade que delegou sua responsabilidade e “ajoelhou-se diante de seu fundador”. Certamente, pode haver personalidades manipuladoras entre os fundadores, mas não creio que seja o caso geral.

Quando uma autoridade funciona como um guru, ela dá esse exemplo de governo. Seus sucessores, não experimentando mais nada, agirão da mesma forma (e muitas vezes ainda mais radicalmente… por desejo de mimetismo levado ao extremo e por preocupação de fidelidade ao fundador). Neste sistema toda autoridade, todo discernimento vem da “cabeça”, os outros não fazem nada além de seguir. Eles não aprendem a discernir por si mesmos para onde o Espírito os está conduzindo.

Essas comunidades funcionam com uma estrutura de pirâmide. Um padre abade que esteve em contato direto com vítimas de pelo menos cinco casos de desvio sectário, em diferentes Ordens, disse: Em cada caso, descobri que as relações são sempre feitas na vertical, nunca na horizontal: se comunica com seu ou seus superiores, mas nunca se comunica a fundo com os outros irmãos.

Isto é um sintoma importante de uma situação de desvio. Sob esse sintoma, pode-se esperar encontrar uma estrutura que foi chamada de estrutura piramidal. Destina-se assim à situação de uma comunidade onde tudo vem de cima e tudo vai para cima. Os monges ou religiosos não têm relações importantes, exceto com os superiores e apenas com eles. Talvez eventualmente haja intermediários, mas são apenas correios de transmissão. As relações que se poderia dizer horizontais, entre os pares, não são favorecidas.

Se o superior quer fazer o que quer, deve amordaçar toda a oposição. (…) se evitará qualquer relacionamento verdadeiramente pessoal entre os membros da comunidade, pelo menos em tópicos arriscados. Assim, quem tiver dúvidas sobre o funcionamento da comunidade, sem ter com quem conversar, não encontrará a confirmação necessária para que uma intuição, não totalmente clara, se transforme em convicção. Permanecerá na dúvida sem ir mais longe. Os meios utilizados variam muito e utilizam vários aspectos da vida religiosa: silêncio, discrição, etc.

Também se evitará trocas com pessoas de fora, principalmente familiares, sobre questões importantes. O risco é exatamente o mesmo: a pessoa que sentiu que algo estava errado pode se confortar em seu julgamento se puder discutir pontos em disputa com pessoas de bom senso. Será sublinhado, por exemplo, que é importante lavar roupas sujas em família; portanto, nunca fale com estranhos sobre o que você pode achar censurável na vida da comunidade. Fala-se sobre segredos de família para evitar falar sobre o real funcionamento da comunidade.

Podemos dizer que o que deve ser guardado na família são os pequenos defeitos, as pequenas fofocas que existem em toda família seja lá o que for. Mas quando se trata de um profundo desconforto sentido pelo religioso, seja pessoalmente ou ao nível da atmosfera comunitária, proibi-lo de falar com estranhos é encerrá-lo em seu desconforto e negar-lhe qualquer oportunidade de encontrar a luz. Dentro da comunidade, os meios serão na maioria das vezes indiretos. O mais fácil é fazer qualquer troca crítica, em nome de um princípio ou voto de unidade, seja considerado uma falta. Você também pode apelar para um princípio espiritual. Se alguém ousar criticar, a resposta será: “você fala segundo a carne, ainda não se converteu.” O processo é bem perverso. A crítica formulada é julgada antes mesmo de ser ouvida e se volta contra a pessoa condenada. O problema vem do fato de que não há qualificador para especificar qual conversão é. Você não está convertido em quê? Ao pensamento único da comunidade. Sutilmente o referencial penetrou. Não é mais o Evangelho, nem a Palavra de Deus ou a Igreja. Dentro desta estrutura de pensamento, se a pessoa é deixada sozinha sem ajuda interna ou externa, torna-se quase impossível sair da armadilha fazendo a distinção que acabamos de fazer.

Os métodos podem ser diferentes, a finalidade é a mesma: isolar as pessoas para que não tenham acesso à luz que não seja a dos superiores. Ao isolamento das pessoas segue naturalmente o isolamento da comunidade. Se as únicas relações significativas permitidas são aquelas com o superior, não há como os sujeitos saírem do mundo de sua comunidade. A questão não é tanto material, mas sim a falta de liberdade para pensar diferente do pensamento único da comunidade. 

Essa atmosfera naturalmente leva a um sentimento de superioridade. O próprio princípio do pensamento único é que qualquer outro pensamento é desviante ou decadente. No campo de vida religiosa, cada comunidade/congregação/ordem tem sua própria fisionomia e sua peculiaridade, e tudo bem. Mas se começarmos a pensar e dizer: somos os únicos monges verdadeiros e os demais são decadentes, a comunidade se fecha sobre si mesma. Se a loucura da grandeza estiver envolvida, então virá o sentimento de serem os salvadores da vida religiosa ou mesmo da Igreja.

E quando a Igreja quiser apontar um defeito, a comunidade não poderá mais ouvi-la e poderá rejeitar a obediência à Igreja em nome da obediência ao fundador e ao “carisma” em que acredita ser o depositário. O erro deriva do fato de que se esqueceu que o carisma deve ser discernido, em seu objeto e na maneira como é realizado, e que esse discernimento pertence à Igreja. 

Se a comunidade se recusar, ela se fechará em si mesma e em sua própria visão da Igreja e do mundo. Portanto, é provável que seja progressivamente cortado do Corpo da Igreja. Temos visto exemplos dolorosos. A visão do fundador pode ser bela e profética, mas só pode dar frutos dentro do corpo da Igreja.

Seja deliberada ou não, a estrutura da pirâmide é essencialmente uma estrutura de controle. O superior controla tudo, pois tudo está sujeito a ele. Os membros, não tendo outra referência além dele, não têm como aplicar à situação um julgamento diferente do seu, pelo menos se sempre viveram dentro dessa estrutura. Essa estrutura tem a característica de ser autossustentável porque é por natureza resistente à mudança e a todo questionamento. Do lado dos membros, mantém indefinidamente uma total dependência entre o superior e os súditos. Portanto, não é possível que os membros adquiram uma autonomia saudável, pois isso significaria perder a única relação significativa existente em sua vida, na ausência de uma relação verdadeira com os demais membros da comunidade. No lado superior, já que você não pode receber nenhuma voz discordante, por que você mudaria?

Este é provavelmente um elemento difundido em “comunidades de desvio sectário”. Não é verdade que a arte de mentir seja <oficialmente> pregada… notemos que esta cultura da mentira encontra na vida religiosa elementos que favorecem muito a sua expressão. A virtude da obediência estimula a confiança no superior, a não discutir constantemente pedindo explicações sobre tudo. Da mesma forma, a discrição é uma qualidade religiosa que ensina a não repetir a todos o que acontece entre nós. Aqui temos os ingredientes cuja força uma pessoa manipuladora saberá usar para ganho pessoal.

Acrescentamos a isso a arte da dissimulação e da sedução, desdobrada diante de quem tem autoridade (Bispo ou Superior Geral) para que não percebam em nada a realidade que está sendo vivida. A autoridade será subjugada pelo que ela vê e, portanto, não poderá aceitar as críticas feitas contra esta comunidade: por exemplo, as frequentes visitas da superiora local ao seu bispo, dão a impressão de que ela é obediente, mas sua maneira de apresentar coisas, para que as autoridades concordem com elas, revela uma consumada arte de simulação, deixando claro que, de fora, pode ser muito difícil identificar esses abusos de autoridade.

Em tal comunidade, uma pessoa funcionará como o centro de tudo. Está pessoa se converte NA referência da comunidade. O que é promovido como verdadeiro não é mais o que é real, mas o que esta pessoa decide. A forma de apresentar ou compreender os acontecimentos não é mais objetiva, mas totalmente dependente da subjetividade dela. Entendemos que o verdadeiro e o bem não são mais a referência… é o eu desta pessoa que ocupou esse lugar. E quando você vive isso dia após dia, sem ter outro ponto de referência além daquele ditado por essa pessoa, as mentalidades se deformam, as pessoas não sabem mais quem são, não existem mais de maneira identificável, tornam-se emanações dessa pessoa-referência, sem consistência pessoal.

Com o tempo, os membros já não sabem quem são e se convencem de que são um nada, incapazes de tudo, aceitando tudo o que os destrói porque, de qualquer forma – dizem a si mesmos – tem pelo menos a oportunidade de serem aceitos pelo comunidade.

Na maioria dos casos sectários, as comunicações horizontais entre irmãos ou irmãs são proibidas. Dessa forma, é a autoridade que filtra as notícias que serão transmitidos e a forma de apresentá-las. É óbvio que quando um irmão ou irmã deixa a comunidade ou é expulso, os outros membros não saberão as razões profundas por trás disso. Não será dito, ficará escondido como a pessoa saiu, por qual motivo e principalmente em que estado físico ou psicológico. De qualquer forma, “foi culpa dele”. De maneira geral, a informação é retida, nem tudo é dito, mas apenas o que levará os outros a julgar como a pessoa-referência. Assim se esconde uma parte da verdade, e acaba-se acreditando na mentira proposta. Quanto mais se mente, mais se torna prisioneiro do sistema construído, para tentar mantê-lo no mínimo de coerência… e o todo se torna uma prisão da qual não se pode mais sair.

A arte do manipulador não é estabelecer atos perigosos para si mesmo, mas criar um clima no qual ele possa reinar. A multiplicação infinita dessas pequenas torções da verdade acabará por podar as consciências dos membros do grupo, que se acostumarão com esse clima de falsidade e acabarão entrando no sistema.

As pessoas não têm mais parâmetros, sentem o risco de serem atacadas a qualquer momento pela autoridade. Eles não podem mais pensar por si mesmos. E se se aventurarem a expressar uma opinião que não se encaixa na palavra oficial, logo serão desqualificados e colocados duramente em seu lugar. A pessoa se torna incapaz de expressar um pensamento pessoal, não encontra mais as palavras. O corpo acabará por se vingar com a insônia, dores ou outras doenças somáticas. Em um nível mais profundo, existe o risco de automutilação (auto violência, lesão intencional), falta de cuidado pela higiene pessoal ou fuga de trabalhos pesados, a não ser chantagem ou mau humor, percebido como a única maneira de existir um pouco. Vamos repetir: nem todos os membros da comunidade experimentarão tal deterioração.

(…)

A armadilha unidade-uniforme é uma característica das comunidades em funcionamento sectário. A unidade, porém, só encontra seu justo equilíbrio na condição de uma saudável integração da diversidade; caso contrário, torna-se uniformidade, mesmo olhando para um único pensamento. O que significa esta última expressão? Que ninguém tem o direito de pensar diferente do pensamento oficial da comunidade, e em uma estrutura piramidal, isso significará: que ninguém tem o direito de pensar diferente do pensamento do superior. As notas podem ser muito diversas. Em sua forma mais marcante, há uma convolução de personalidades e um certo empobrecimento da comunidade.

Em toda vocação comunitária há naturalmente elementos em que todos devem estar de acordo. O primeiro nível, portanto, é um núcleo de alguns elementos inegociáveis, aqueles que definem a vocação e que, portanto, serão encontrados em todas as casas do Instituto. Em torno deste núcleo, uma coroa de elementos que dão uma certa fisionomia a uma comunidade e que farão uma certa pessoa entrar numa certa abadia e outra, numa outra. Elementos menos importantes, mais culturais, por assim dizer, mas que facilitarão a inserção. Fora disso, reina a maior liberdade, que faz com que as almas se pareçam apenas no semblante. Você pode viver em unidade e ter preferências diferentes em espiritualidade, liturgia, política ou culinária, isso faz parte da vida. Se essas distinções não são feitas, como evitar confundir o acidental e o essencial e tomar como ameaça à unidade-uniformidade o que é simplesmente uma diversidade saudável?

Para resumir, aqui está, em partes, o mecanismo desta pseudo unidade usada como meio de controle:

Visto do lado dos membros: • Sou responsável pela unidade. • Se eu não concordar totalmente com o pensamento fornecido pelo superior, apresento uma semente de discórdia. • Eu, portanto, faço o trabalho do divisor, Satanás. • Meu pensamento pessoal vem do Diabo. • Eu tenho que lutar com meu pensamento porque é uma tentação.

Visto do lado da pessoa referência: • Os membros não têm mais pensamentos pessoais. • Todos pensam o mesmo. • Eu sei o que todos pensam. • Sinto-me calmo e no controle. • Faço o que quero: uma palavra e todos seguem.

Por meio desse mecanismo profundamente perverso, os próprios membros passam a negar seu direito a um pensamento pessoal. O prisioneiro tornou-se seu próprio carcereiro porque se condena.

Essa questão não é apresentada da mesma forma nas comunidades masculinas e femininas. A tentação de controlar tudo existe em ambos os casos, mas os meios não serão inteiramente os mesmos. Em uma comunidade masculina, o controle geralmente será exercido mais diretamente, no nível da atuação, da autoridade. Por isso mesmo é mais facilmente detectável e analisável. A pressão para a abertura do coração será mais rara no mundo masculino. Em uma comunidade feminina, a dinâmica será diferente, as pressões para abrir o coração podem ser puramente afetivas; É claro que o superior pode facilmente usar essa necessidade feminina para seu benefício pessoal.

É preciso ter a coragem de reconhecê-lo: a paternidade espiritual e a abertura de coração podem ser usadas perversamente para transformar uma alma em escrava.

O pelagianismo e o gnosticismo atuais

Em algumas encíclicas, o Papa Francisco escreveu sobre essas duas heresias e como elas se manifestam na vida do cristão atualmente. Trago excertos abaixo que complementam a reflexão a respeito das derivações sectárias, porque muitas dessas ideias vigoram com força neste ambientes.

Na Gaudete et Exultate, ele escreveu: O poder que os gnósticos atribuíam à inteligência, alguns começaram a atribuí-lo à vontade humana, ao esforço pessoal. Surgiram, assim, os pelagianos e os semipelagianos. Já não era a inteligência que ocupava o lugar do mistério e da graça, mas a vontade. Quem se conforma a esta mentalidade pelagiana ou semipelagiana, embora fale da graça de Deus com discursos edulcorados, «no fundo, só confia nas suas próprias forças e sente-se superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico». 

Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o da justificação pelas suas próprias forças, o da adoração da vontade humana e da própria capacidade, que se traduz numa autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor. Manifesta-se em muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial. É nisto que alguns cristãos gastam as suas energias e o seu tempo, em vez de se deixarem guiar pelo Espírito no caminho do amor, apaixonarem-se por comunicar a beleza e a alegria do Evangelho e procurarem os afastados nessas imensas multidões sedentas de Cristo.

Muitas vezes, contra o impulso do Espírito, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa propriedade de poucos. Verifica-se isto quando alguns grupos cristãos dão excessiva importância à observância de certas normas próprias, costumes ou estilos. Assim se habituam a reduzir e manietar o Evangelho, despojando-o da sua simplicidade cativante e do seu sabor. É talvez uma forma subtil de pelagianismo, porque parece submeter a vida da graça a certas estruturas humanas. Isto diz respeito a grupos, movimentos e comunidades, e explica por que tantas vezes começam com uma vida intensa no Espírito, mas depressa acabam fossilizados… ou corruptos.

Nos ensina o Papa Francisco na Evangelii Gaudium: Nas aparências de religiosidade e de amor à Igreja, o cristão mundano trabalha pelo bem-estar pessoal e cultiva o cuidado da aparência, busca a glória humana e não a de Deus, o interesse próprio e não o de Cristo. É fascinado pelo gnosticismo, enclausurado na imanência da própria razão ou dos sentimentos. Vive um neopelagianismo autorrefencial, confia só nas suas próprias forças, sente-se superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser fiel a um estilo “católico” próprio do passado. O cristão mundano é apegado à segurança doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário; analisa e classifica os demais, em vez de lhes facilitar o acesso à graça; pretende dominar o espaço da Igreja; tem um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se preocupa com a real inserção do Evangelho na vida concreta do povo; transforma a vida da Igreja numa peça de museu ou numa posse de poucos; é fascinado pelo poder, quer mostrar conquistas sociais e políticas; é atraído pelas dinâmicas de autoestima e de realização autorreferencial; deixa-se envolver numa densa vida social cheia de viagens, reuniões, jantares, recepções; desdobra-se num funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde o principal beneficiário não é o povo de Deus, mas a Igreja como organização; encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos que estão sedentos de Cristo; vive o gozo espúrio de uma autocomplacência egocêntrica; alimenta-se do poder e prefere ser general de exército derrotado antes que simples soldado de um batalhão que continua a lutar; sonha com planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados; com isso, nega a história da Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso; olha de cima e de longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência; circunscreve os pontos de referência ao horizonte fechado da sua imanência e dos seus interesses. Um cristão mundano é centrado em si mesmo, escondido numa aparência religiosa vazia de Deus. Um cristão mundano não abre espaço para a graça misericordiosa de Deus- Pai revelada na cruz de Jesus e numa Igreja missionária.

Na Encíclica Evangelii Gaudium, o Papa nos ensina que o gnosticismo É uma suposta segurança doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar.

Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. São manifestações dum imanentismo antropocêntrico. Não é possível imaginar que, destas formas desvirtuadas do cristianismo, possa brotar um autêntico dinamismo evangelizador. Quem caiu neste mundanismo espiritual causado pelo gnosticismo e pelagianismo olha de cima e de longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência. É uma tremenda corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo.

Me dói muito comprovar como nalgumas comunidades cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas, se dá espaço a várias formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme, a desejos de impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes comportamentos? Peçamos ao Senhor que nos faça compreender a lei do amor. Que bom é termos esta lei! Como nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns aos outros! Sim, apesar de tudo! A cada um de nós é dirigida a exortação de Paulo: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos de fazer o bem» (Gal 6, 9).

Na Encíclica Gaudete et Exultate, o Papa nos explica que “Para o gnosticismo o que importa é uma série de conhecimentos ou raciocínios que supostamente confortam e iluminam, mas, na verdade, fecham a pessoa em si mesma, na sua própria razão ou sentimento. Em suma, trata-se de uma vaidosa superficialidade (…) No entanto, consegue subjugar alguns com o seu fascínio enganador, porque o equilíbrio gnóstico é formal, podendo assumir o aspecto duma certa harmonia ou duma ordem que tudo abrange. O gnosticismo é uma das piores ideologias, pois, ao mesmo tempo que exalta indevidamente o conhecimento ou determinada experiência, considera que sua própria visão da realidade seja a perfeição. Assim, talvez sem se aperceber, esta ideologia se autoalimenta e torna-se ainda mais cega. Com efeito, o gnosticismo, «por sua natureza, quer domesticar o mistério» tanto o mistério de Deus e da sua graça, como o mistério da vida dos outros”.

Não podemos pretender que o nosso modo de entender a doutrina nos autorize a exercer um controle rigoroso sobre a vida dos outros. Quero lembrar que, na Igreja, convivem legitimamente diferentes maneiras de interpretar muitos aspetos da doutrina e da vida cristã, que, na sua variedade, «ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra.

Recapitulando 

  • Muitos desses grupos apresentam uma relação problemática com a figura do fundador ou líder, vivendo um verdadeiro culto à sua pessoa;
  • Tudo passa a girar nas mãos dos superiores (fundador, núcleo, presidente, qualquer que seja o nome) e o grupo entra em um mecanismo de controle;
  • Todos os membros habituam-se a contar tudo sobre suas vidas aos superiores e esperam deles a tomada de decisão sobre as mínimas coisas;
  • Há o pensamento de que quem está no grupo está salvo e quem está fora está condenado;
  • Pode haver o pensamento de que o grupo é a salvação da Igreja. Que só ele detém a sabedoria para resolver os problemas atuais;
  • Muitos desses grupos se opõem fortemente à Igreja até mesmo quando são corrigidos por ela. Tantas vezes se afastam tanto da Igreja que acabam entrando em cisma. Possuem um forte senso de perseguição. Qualquer crítica ou problema que lhes aconteça é visto sob o prisma sobrenatural da perseguição;
  • Quem sai desses grupos torna-se automaticamente esquecido ou inimigo. Muitos são perseguidos e prejudicados duramente;
  • O grupo torna-se uniforme: todos os que entram começam a se expressar e se comportar da mesma forma. Para ser aceito é preciso se adequar ao padrão;
  • Há o isolamento. O grupo torna-se um ambiente cada vez mais seleto e fechado. Ele passa a se tornar a nova família;
  • Neste tipo de ambiente só alguns assuntos importam: os que servem aos interesses do grupo. Assim também são as pessoas: só valem conforme podem oferecer algo pelo bem do grupo;
  • Neste tipo de ambiente costumam haver chavões que embotam o raciocínio. Questionamentos profundos são respondidos de forma simplória com esses chavões;
  • Neste tipo de ambiente o pensamento crítico não é estimulado. Perguntas e pensamentos diferentes do que o grupo pensa são vistos como ofensivos;
  • Neste tipo de ambiente há muita manipulação principalmente através da linguagem e das emoções;
  • Há uma hiper vigilância onde todos estão vigiando todos, julgando, fofocando, acusando, delatando de forma sutil e “em segredo”;
  • Neste tipo de ambiente esses comportamentos citados acima não são explícitos. A forma de se expressar e de pressionar é bem difusa, como uma névoa que aos poucos vai causando confusão na cabeça dos membros e que eles vão absorvendo através de sugestões e mimetismo;
  • Os principais sentimentos gerados nesses ambientes são os de tristeza, insegurança, culpa, vergonha e medo;
  • Muitos desses ambientes provocam prejuízos severos em seus membros, tanto do ponto de vista psicológico, quanto afetivo, espiritual e até mesmo financeiro;
  • Muitos desses ambientes favorecem abusos e eles são acobertados para salvaguardar a imagem do grupo.

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No próximo texto vamos conversar um pouco mais sobre as Derivações Sectárias! Até lá!

Terapeuta e Escritora

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