A psicologia das seitas
Você já leu histórias ou assistiu documentários e filmes sobre seitas bizarras? Elas fazem parte do imaginário popular, graças a casos trágicos que ganharam as páginas dos jornais e causaram grande espanto. Algumas são simples casos de charlatanismo; outras terminaram em suicídio em massa e se tornaram um grande trauma na região. É importante levar em conta que embora nem todo grupo sectário seja abusivo e coercitivo, a grande maioria se enquadra nessa classificação.
Na história da humanidade são inúmeros os casos de grupos sectários abusivos e suas complicações significativas. Isso levou diversos pesquisadores a estudarem os mecanismos que estão envolvidos nessas formas de vida e de coerção psicológica. O ramo da Psicologia Social já apresenta muitos conhecimentos significativos a respeito do modus operandi das seitas.
O que são seitas?
Embora as seitas tenham sido estudadas extensivamente, há pouco consenso em torno de uma definição universal. Em geral elas se configuram como movimentos ideológicos (podem ser de caráter religioso, social, político, filosófico, financeiro, etc) que formam grupos marcados por duas características fundamentais: o apego a um líder e a negação do mundo (quem está fora da seita está condenado, perdido). As leis e costumes “de fora” são decadentes e inadequados.
Sociólogos e cientistas elencam traços em uma semelhança de família para identificar uma seita ou culto abusivo:
- Liderança carismática: reivindica uma autoridade especial que os de fora ou nos baixos escalões no próprio grupo não possui. Funciona muito bem porque vive da circulação de lendas, reivindicação de chancela divina e dos louvores dos seguidores.
- Sistema de crenças monopolizante: uma única ideologia que seria “a verdade”, pela qual serve de filtro para processar outras fontes de informações. Em razão disso, vive-se em constante dissonância cognitiva quando confronta a realidade com suas crenças. Por fim, aceitar a “cosmovisão” passa a ser requisito de aceitação no grupo.
- Fronteiras e normas de controle: definem a identidade, o pertencimento, a legitimidade, a uniformidade de pensamento ou ação. É o mecanismo para sentir-se especial. Nisso, a seleção de um grupo bode-expiatório, inimigos reais ou não, serve para formar uma identidade por contraste.
- Oferta daquilo em falta: o grupo oferece algo — socialização, serviços, confirmação de crenças e valores– que agentes sociais normais supostamente não conseguiram prover: o Estado, a ciência, a família, as instituições educacionais, a segurança pública, os estabelecimentos religiosos, o sistema de saúde ou a economia regulamentada.
- Exercício de poder: o grupo manipula emoções e informações para impor conformidade, quebrando a individualidade dos sujeitos. Há a tática de restringir-se a poucos canais de informação sancionados. Os recursos e empenhos pessoais dedicados ao grupo fazem o indivíduo temer várias perdas caso contradiga os ditames do culto.
O sociólogo Peter L. Berger definiu seita como a organização de um grupo contra um meio que consideram hostil ou descrente de algo. Os membros se fecham em um corpo de doutrinas e olham o restante da sociedade como inerentemente má, “cega” ou pecadora.
“As seitas escondem-se por trás de um discurso socialmente aceito”, afirma Miguel Perlado, coordenador do grupo de trabalho sobre desvio sectário da Ordem Oficial de Psicologia da Catalunha.
O psicólogo Robert Lifton, que estudou a questão a fundo, identificou oito características da psicologia das seitas. Entre elas, estão:
- O controle dos canais de comunicação com o restante do mundo;
- A obsessão com “pureza” (ideológica, religiosa, etc.);
- O culto da confissão (não tem nada a ver com o sacramento da Confissão). É um mecanismo onde todos devem contar todos os seus pensamentos aos superiores;
- O uso de clichês para bloquear o pensamento: em vez de debatidas, críticas são rotuladas e descartadas;
- O primado do coletivo, visto como “mais real” que os membros em sua individualidade;
- O controle, pela liderança, da qualidade de vida dos membros;
- A manipulação emocional, com explosões “espontâneas” – de alegria, indignação, etc.
- A sacralização dos princípios do grupo, que passam a ser vistos como dogmas morais.
Uma das características mais perigosas é que seitas são sutis. As seitas religiosas acabam tendo um maior potencial de conquistar a devoção e o fanatismo dos seus seguidores, pois incluem uma fé no divino ou em forças ocultas, natureza, ou na própria divindade do ser humano. Isso é um prato cheio para cooptar aqueles que se sentem incapazes diante as dificuldades e dores do mundo.
Um grupo que funciona na base do segredo tem todo o potencial para ser abusivo. Principalmente se os seus líderes têm conhecimentos sobre psicologia, linguagem, persuasão, neurolinguística, filosofia e outros assuntos do tipo. Esses conhecimentos ajudam pessoas abusivas a manipular os mais vulneráveis.
As seitas são grupos nos quais ocorre algum tipo de abuso psicológico. O abuso psicológico é entendido como um processo de aplicação sistemática e contínua de estratégias de pressão, controle, manipulação e coerção com o fim de dominar outras pessoas para conseguir uma submissão às mensagens que o grupo dita. Desse modo, os grupos abusivos operam por meio da manipulação, do domínio, do controle, da exploração, do abuso e da coação.
Por que as pessoas entram em seitas?
O que nos faz abdicar de nossa capacidade de arbitrar decisões importantes, refletir de forma lúcida, tomar consciência de nossas virtudes e contradições e seguir uma ideia/pessoa/mito de forma cega a ponto de colocar a nossa vida e de pessoas que amamos em risco?
Geralmente as pessoas se juntam a uma seita porque estão procurando uma comunidade de aceitação. Na maioria das vezes, esses grupos e seus líderes fazem promessas muito atraentes de poder, salvação e outras coisas que podem tornar uma pessoa interessada em ingressar. Além disso, os líderes de seita são frequentemente muito carismáticos, o que significa que os outros os consideram charmosos, envolventes e persuasivos. Essa combinação de promessas atraentes e líderes carismáticos é intencionalmente projetada para ativar emoções fortes e atrair recrutas em potencial que procuram algo a que possam pertencer.
Alguém que venha de uma família disfuncional, com pais permissivos ou abusivos, oferece as condições para que uma filosofia ou mestre de pretensões absolutas do tipo “eu salvo você” caia como uma luva. Para quem não tem convicções mais sólidas sobre sua importância, o guia vem como uma voz na escuridão da vida. Além disso, pessoas com fragilidades emocionais também costumam serem presas fáceis.
Contudo, a realidade é que qualquer um pode ser captado e atraído quando estiver em um momento difícil. Logo, mais do que pessoas vulneráveis, poderíamos falar de pessoas que estão vulneráveis, por estarem passando por um momento especialmente delicado em que buscam algum apoio.
“80% dos adeptos das seitas têm estudo técnico a nível superior”, diz Jose Miguel Cuevas (membro da Asociación Iberoamericana para la Investigación del Abuso Psicológico – AIIAP). Entre eles temos advogados, médicos, funcionários e pessoas marginalizadas. Os grupos abusivos “buscam pessoas brilhantes com a capacidade de enriquecer o grupo; poucos vão buscar pessoas que não tenham potencialmente um benefício para o grupo”.
Os elementos de uma seita
- O líder
Existem muitos tipos de líder e cada líder oferece — ou tenta oferecer — algo exclusivo para atrair as pessoas. Mas todos têm algo em comum: eles têm uma missão, uma revelação divina, uma fórmula única, um método, que só funcionará se você os seguir e obedecer a todas as instruções.
Normalmente, a figura de poder costuma ser possuída de um narcisismo muito sofisticado, que não é identificável com facilidade, pois vem embalado numa aura de beatitude. É possível entrever as contradições nos momentos em que surgem grandes frustrações no projeto superior, quando a comunidade cresce ou quando surgem opositores — externos ou internos — ao círculo. Não raro, é possível presenciar fúria, desprezo, acusação, manipulação de interesse e o jogo do “me traíram”, “fiquem vigilantes uns com os outros” ou “há uma mal que tenta nos dividir que precisamos destruir”.
2. Os seguidores
Os convertidos são essenciais para dar veracidade ao que o mestre visualizou. Eles oferecem o seu tempo e energia para obter o mesmo tipo de benefício do mestre. Com o tempo, se tornam submestres que representam fielmente a vontade do superior supremo. Acabam sendo os olhos do líder para que nada saia do lugar. Todos os não-seguidores podem ser potenciais convertidos, por isso, a postura com eles é geralmente amistosa.
Com o tempo e a dedicação, o medo de admitir que se está desperdiçando recursos acaba dominando a mente do seguidor, mesmo que ele veja gritantes contradições na seita. Uma identidade baseada em premissas totalitárias não oferece muita chance de arrependimento sem causar um abismo emocional. A sensação é de completo desamparo, como mudar para um país estranho sem saber a língua e os costumes e sem garantia de um futuro melhor.
Os experts concordam que quando as vítimas são atraídas mudam sua forma de falar, se expressam como outra pessoa e repetem frases feitas, se distanciam das pessoas mais próximas delas, tornam-se monotemáticas e se interessam por bibliografia e autores que até então não haviam lido. São mais esquivas, falam pouco e se irritam facilmente, mudam o modo de se vestir e as atividades cotidianas, e ficam mais frias ao expressar sentimentos.
Até mesmo quem abandona a seita ainda pode seguir com uma espécie de Síndrome de Estocolmo, defendendo o mestre e atribuindo a decepção a alguma outra instância do processo que não dizia respeito a eles. Esse é o pulo do gato que mantém a adesão: a falta de autocrítica para além da própria bolha.
3. A ideologia
A vida tão carregada de paradoxos incompreensíveis e com tantas incertezas e ambiguidades nos deixa aturdidos. Quem nunca sentiu saudade da inocência da infância, quando os pais garantiam toda a segurança e acolhimento do mundo e bastava viver um dia depois do outro? Essa proteção existencial é metaforicamente proporcionada pela ideologia do líder da seita.
A principal característica dos métodos de reforma de pensamento é a criação de uma noção clara da existência de dois grupos muito distintos entre si: os que aceitam as novas regras do jogo da seita versus aqueles que ainda não encontraram a verdade. Nessa ideia bem primitiva já é possível ver os gatilhos do medo e do desejo de afiliação bem acesos. Quem não quer pertencer ao clube supremo dos bem-sucedidos financeiros, espirituais e sociais? Quem não quer ter acesso à informações privilegiadas que o distinguirão dos demais?
As metas, de modo geral são sempre muito difusas e quase inatingíveis para grande parte das pessoas da seita e, supostamente, visíveis em seus líderes e sub-líderes. É preciso usar uma linguagem compreensível como o amor, a paz, o patriotismo, a fé e a virtude de modo geral, mas de um modo idiossincrático, com uma textura particular e linguagem própria, quase criptografada com o selo do guia. Para abrir essas chaves o seguidor precisa se submeter a uma série de rituais concretos ou simbólicos que o qualifiquem a ter determinado privilégio.
Nesse quesito, vale tudo, até criar comprovações pseudocientíficas para sustentar a fantasia coletiva. Porém, isso nunca é mostrado como algo antirracional, mas como verdades desconhecidas, ignoradas ou até invejadas pela ciência, “eles nunca admitirão isso, afinal, vão perder muito poder/dinheiro/influência se isso vier à tona”.
Mecanismos de consolidação e funcionamento da seita
Não é possível manter uma estrutura mental e social de seita sem algumas engrenagens concretas, pois sem isso, ela perde efeito muito rápido. Normalmente, incluem práticas específicas, um molde comportamental, mecanismos de controle e gerenciamento de debandada.
- Bombardeio inicial de amor
Em primeiro lugar, uma seita precisa converter a pessoa. E isso é alcançado fazendo com que ela se sinta especial e compreendida. Muitos estudiosos desse fenômeno usam o termo “bombardeio de amor” para descrever o processo de dar a alguém atenção personalizada e elogios, de maneira que o objeto dessa atenção se sinta notado. A pessoa alvo dessa atenção pode estar buscando há muito tempo respostas para seus problemas, para os problemas do mundo e é então convencida de que se unir à seita lhe dará acesso a essas soluções.
As boas vindas são práticas essenciais, pois todo o protocolo da conversão acontece no impacto inicial, na dissonância cognitiva entre o que a pessoa vê “lá fora” versus “dentro” da seita. É ideal que a primeira impressão faça a pessoa se perguntar como viveu até aquele momento sem saber que um lugar tão especial existia. Os novatos são tratados com todo o mimo possível. Quem pode dizer ‘não’ depois de ser tão presenteado emocionalmente com coisas lindas? O gatilho de reciprocidade exerce fundamental influência, afinal, é muito difícil resistir depois de ser tão bem recebido.
2. O uso da linguagem
Pouco a pouco um tipo de vocabulário novo é introduzido. Termos em outras línguas são comuns, até para desconfigurar a lógica habitual e oferecer um senso de importância e exotismo ao processo, como se viesse de longe. Esses novos jargões dão um tipo de identidade ao grupo e facilita o reconhecimento de quem está dentro ou fora do círculo.
Embora a linguagem utilizada pelas seitas seja a chave para atrair novos integrantes, ela por si não é suficiente para “lavar o cérebro” de uma pessoa para que ela se junte ao grupo, esclarece a especialista em linguagem Amanda Montell, autora do livro Cultish: The Language of Fanatism (“Como num culto: a Linguagem do Fanatismo”, em tradução livre).
“É necessária uma linguagem para obscurecer as verdades, para construir a solidariedade, para plantar uma ideologia, para dividir as pessoas em ‘nós’ e ‘eles’, para plantar a filosofia de que ‘os fins justificam os meios’ e para fazer todo o necessário para ganhar e manter o poder. Isso é o que fazem muitos líderes de seitas“, diz Montell. “Eles adotam a linguagem de ideologias que eles respeitam.”
Contudo, o líder de uma seita não é capaz de ser um “gênio iluminado” 24 horas por dia, sete dias por semana, então é preciso rapidamente conseguir eliminar o pensamento independente e os questionamentos.
Uma das formas com que seitas fazem isso é por meio de “clichês que põem um fim a pensamentos”. O termo, cunhado no início da década de 1960 pelo psicólogo Robert Jay Lifton, “descreve uma expressão comum que é memorizada e repetida facilmente, e tem como objetivo acabar com o questionamento ou o pensamento ou análise independente“, observa Montell. São costumeiramente frases simples que reduzem constatações lógicas e impedem que o sujeito raciocine.
Não há espaço para suas ideias ou críticas dentro de uma seita. Isso parece óbvio, uma vez que o líder já tem toda a revelação necessária, mas é importante frisar que inibir as críticas é essencial para manter o controle do líder sobre os membros.
Isso nem sempre é uma tarefa fácil quando os membros sentem alguma liberdade para se expressar. Em algumas seitas modernas é importante dar uma falsa ilusão de que essa liberdade existe e, por isso, há outros meios aos quais o líder recorre para que críticas não derrubem sua imagem de “especial”.
Nesses casos, os membros são desencorajados a dar suas opiniões através de abusos psicológicos que deturpam a imagem que eles têm de si mesmos, para que se sintam inferiores. Não basta que o líder seja uma espécie de super-homem ou profeta moderno, os seus seguidores precisam acreditar que sequer são dignos de estarem ali.
3. Reforma do pensamento ou persuasão coercitiva
Trata-se de um condicionamento com reforços positivos, junto a uma série de iniciativas para fazer com que as vítimas tenham uma outra percepção de mundo e de si mesmas, sem notar que estão sendo manipulados.
Podemos definir a persuasão coercitiva resumidamente como “método para controlar por meio da aplicação gradual de forças psicológicas, provocando mudança comportamental através de ‘aprendizado’ ou da adoção de uma série de comportamentos para seguir determinada ideologia, de maneira subliminar, sem que a vítima perceba”.
Alguns psicólogos e psicanalistas dedicados a estudar as seitas e cultos destrutivos criaram listas de características para identificar um líder que usa persuasão coercitiva. Entre esses estudiosos está Margaret Thaler Singer, uma psicóloga clínica e pesquisadora proeminente no estudo da influência negativa que cultos destrutivos exercem. Em seu livro Cults in Our Midst: The Hidden Menace in Our Everyday Lives, ela enumera seis critérios essenciais para uma reforma efetiva do pensamento.
a) A pessoa não sabe que está sob um programa para alterá-la ou controlá-la. Iniciantes são guiados passo a passo por um processo de mudança de atitudes e comportamentos sem ter consciência do propósito ou das características reais desse procedimento. Assim, as pessoas se comprometem com a seita ou culto sem saber que algo anormal está acontecendo; submetem-se à estrutura hierárquica e se colocam a serviço do líder. Este, por sua vez, faz parecer que tudo o que acontece é normal, e essa atmosfera de normalidade é reforçada pelos membros do grupo, que também moldam o comportamento de novos seguidores.
b) Controle do tempo e do ambiente físico. Os líderes buscam controlar o contexto social da vítima e seu ambiente físico, com uma atenção especial no controle do tempo. As pessoas são encorajadas a se manterem constantemente ocupadas. Os horários e deveres constantes são alternados, de modo que impeça os membros da seita a se integrarem totalmente nas relações com seu ambiente social. Com as novas tecnologias, essa tática ganhou ainda mais força, já que os líderes têm novas ferramentas para comunicação à distância. Assim, esse tipo de controle do tempo se torna mais rígido.
c) Sensação de desamparo, medo e dependência. Com essa prática, a seita causa na vítima a perda de autonomia psicológica. O grupo busca isolar novos membros de seus meios sociais, fazendo com que as pessoas só possam manter contato com membros da seita. Isso faz com que se tornem dependentes da seita/culto, principalmente quando a comunidade se localiza em algum lugar remoto. Cada membro serve como um modelo de atitudes e comportamentos para os demais, e uma linguagem própria e exclusiva é usada. Nesses casos mais extremos, a pessoa que se mudou para a comunidade deixa seu emprego e fonte de renda, e alguns doam suas posses para o grupo. Nesse processo, a confiança interior da pessoa se enfraquece, ela adquire uma nova visão do mundo, e passa a acreditar que sua vida anterior era totalmente errada.
d) Suprimir antigos comportamentos e atitudes. Se a vítima é convencida de que viveu de forma errada até então, ela será levada a um processo de “desintoxicação” da vida anterior. Todo e qualquer comportamento associado à identidade social da pessoa é inibido. Uma nova identidade social é lentamente adotada e o passado da vítima é reformado para ser considerado irrelevante ou prejudicial. É preciso um “arrependimento”, ou seja, uma nova forma de viver, contrária à vida anterior.
e) Novos comportamentos e atitudes. Um sistema de recompensas, punições e experiências é aplicado para que a doutrina ideológica do grupo seja ensinada e internalizada. Se alguém questiona o ensino, o grupo fará com que essa pessoa sinta que há algo intrinsecamente maligno no questionamento. Isso pode fazer com que a pessoa seja isolada ou até expulsa. O modo de vida é muitas vezes complicado, cheio de paradoxos e contradições, exigindo sacrifícios para aprender e praticar.
f) Um sistema lógico fechado. É estabelecido um sistema de pensamento lógico-simbólico e uma estrutura autoritária que não permite modificações, exceto por determinação do líder. O grupo terá uma organização hierárquica e piramidal, mesmo que isso não seja muito explícito. Às vezes, cargos para os mais experientes dão forma a uma hierarquia disfarçada de relações horizontais. Mesmo que o grupo diga que está aberto a críticas, qualquer um que criticar será considerado como uma pessoa falha. O grupo em si nunca estará errado, nem as regras, crenças, normas, símbolos e valores que fundamentam o seu funcionamento.
4. Isolamento
Uma seita provavelmente afastará lentamente os indivíduos de suas famílias e amigos. Será dito que isso é para que possam se dedicar cada vez mais à sua “missão”. Se os amigos e familiares “não entenderem”, eles são inimigos em potencial e os membros devem abandoná-los definitivamente. Afinal, “família é aquela que se escolhe”, ou como disse o Cristo, “minha família são aqueles que fazem a vontade de Deus”. Isso deve ser levado ao pé da letra pelos fiéis.
Esse tipo de separação e isolamento é uma técnica conhecida como “Milieu control”, e se trata de um controle do meio ambiente e condição de vida do membro. Essa técnica é amplamente utilizada por grupos que recorrem à reforma de pensamento.
Para convencer os membros, são usados frases, jargões e argumentos. Um dos recursos mais conhecidos pelos pesquisadores de seitas é chamado de “síndrome de nós/eles” — os membros da seita são os únicos detentores da verdade e por isso o mundo se voltará contra eles. Ao mesmo tempo, eles devem combater o mundo, que é mau, perverso e irremediável.
Essa abordagem semeia o medo de fracassar na missão proposta pela seita. Se o membro não se isolar do mundo, ele corre o risco de ser contaminado por ideias contrárias à “verdade”. Essas ideias podem vir de qualquer um: família, amigos, um balconista de alguma loja, os telejornais, as novelas.
Algumas seitas também usam o clássico “ideal de Pureza”. Uma vez que crescemos e vivemos em um mundo “impuro”, é preciso que o membro se isole completamente até que esteja “limpo” da “impureza impregnada” nele.
Com a alienação, doutrinação e isolamento, os membros são limitados a uma única visão de mundo. Uma interpretação de toda a realidade sob o ponto de vista daquela doutrina. Embora este não seja o problema em si, isso torna os seguidores suscetíveis à liderança, pois é o líder quem trouxe a “revelação” sobre essa visão de mundo. O que ele disser, provavelmente é verdade. Daí, a brecha para os abusos aparece.
5. Molde comportamental e controle
A pessoa começará a odiar o seu passado, sua história e suas relações anteriores como maneira criar um divórcio interior: eu não sou mais aquele eu. Desse modo, o que se vende é que se poderia acabar com a dimensão destrutiva e egocêntrica da personalidade para criar uma personalidade limpa, dissidente do passado.
Os membros são bombardeados com ensinamentos e ressignificações de palavras-chave. Leitura de livros é desestimulada; às vezes, proibida. Aos poucos, todos os membros pensam de forma semelhante sobre os mais variados assuntos, e sempre de acordo com as diretrizes da seita. Quem manifestar algum pensamento diferente, será corrigido e provavelmente humilhado em grupo.
Com a vigilância e a falta de privacidade, o membro vive diariamente atento ao seu comportamento para que não seja pego em flagrante cometendo algum “erro” ou “pecado”. Com o tempo, os comportamentos regrados e cautelosos se tornam habituais.
Será induzido no membro, dia após dia, sentimentos negativos sobre si mesmo. Sentimento de culpa sobre seus “erros”, humilhações e a destruição da autoestima são vistos como parte do caminho para a “evolução espiritual” ou “alcançar o paraíso”. O medo também é estimulado — medo do mundo, medo de errar e ser repreendido, medo dos “inimigos”, medo de ser expulso, medo de perder a salvação. A culpa sobre ser quem é estará sempre incutida na mente do indivíduo.
Através da síndrome “nós/eles”, a seita controla a forma de ver o mundo, geralmente com uma grande teoria de conspiração. Essa conspiração está em tudo que há de negativo no mundo, e essa visão explica as tragédias e injustiças. A seita se coloca como única solução, um “remédio”, uma “cura”, ou um meio para que Deus traga a solução. Assim, a seita está acima do mundo, e o mundo não pode julgá-la, incluindo as leis humanas.
O resultado de todos esses tipos de controle é que o membro aos poucos adquira uma nova identidade, anulando sua própria individualidade e tornando-se mais parecidos com os seus líderes. É comum que, caso se encontrem com pessoas de sua antiga vida, estejam de certa forma irreconhecíveis.
6. Gerenciamento de debandada
Para impedir que qualquer pessoa queira arriscar a vida “lá fora”, ocorrem muitas ameaças de perdas de privilégios e vantagens sociais, emocionais e/ou financeiras. Se alguém sair, é um traidor de uma causa santa e se torna um novo inimigo, para reforçar aqueles que ficaram e evitar que outros também saiam da seita. Nada do que o dissidente falar é levado em consideração, afinal, ele caiu em descrédito. Quem ousa questionar o mestre e os seus métodos está ameaçado frontalmente com a perda de prestígio do grupo.
Deixar o grupo é sempre considerado um erro grotesco, e a seita sempre vai descrever coisas terríveis que acontecem aos que desistirem. Também dirá a todos os demais que os ex-membros agora são inimigos. Ninguém mais poderá manter contato com eles. Essa é uma das características de qualquer seita. Embora a maioria não tente proibir a saída através da força, elas implantam fobias, ainda que sutis, para garantir que a ideia de ir embora sequer vá passar pela cabeça das vítimas.
Com esses fatores aliados a uma doutrina que torna os membros dependentes da seita, é comum que as vítimas vivam acreditando que passarão o resto de suas vidas nessas comunidades. Claro, é possível sair de uma seita. O problema é que as vítimas não enxergam essa possibilidade até que não tenham outra escolha. A seita cercará seus membros de todas as formas possíveis para fechar todas as saídas imagináveis — porém, isso é feito na forma de abusos emocionais.
Qualquer vítima de uma seita abusiva ouvirá histórias sobre membros que já foram embora. Os “desistentes” sempre serão considerados fracos, perdedores, fracassados, malignos, ingratos. Em muitos casos, serão chamados de “inimigos”.
Um alerta
- Culpa: para muitas seitas abusivas, a culpa é fundamental, pois ela torna os membros suscetíveis à punição. Fazer os membros se sentirem culpados é importante para que eles dependam cada vez mais da seita para se redimir dos erros e “consertar” seu jeito de ser.
- Abuso psicológico e emocional: quando se comete um “erro” ou “pecado” pode haver uma grande pressão por parte dos demais para que o erro não se repita. Os “erros” podem ser coisas banais como usufruir de algum conforto ou ceder à “tentação” de visitar a família. As consequências podem ser longos sermões carregados de pressão psicológica, humilhação coletiva, castigos, retirar certos privilégios. Algumas seitas usam violência física.
- Exploração de trabalho: algumas seitas farão os membros usarem sua força de trabalho em prol do grupo, ou mais especificamente do líder — mas nunca em prol de si mesmo.
- Apropriação de bens: as seitas convencem membros a doarem todos os seus bens. Não raro, pessoas doam carros, casas, apartamentos, esvaziam suas contas bancárias e, quando conseguem se livrar da seita, saem sem nada.
- Abuso sexual/estupro: diversas seitas já se tornaram notícia devido a escândalos sexuais, abusos e estupro. Pedofilia, incesto, orgias entre outros tipos de práticas são impostos como regra de fé. E o acobertamento torna-se uma norma geral.
- Corrupção de vulneráveis: menores de idade às vezes são procurados pelas seitas por serem mais vulneráveis a seus discursos ideológicos de “mudar o mundo”, aproveitando-se da insatisfação dos jovens com o sistema. Outro grupo de pessoas vulnerável a essas abordagens são portadores de depressão, pessoas que buscam um “sentido para a vida” ou que buscam se livrar de vícios.
Conclusão
Este artigo tem a intenção de provocar uma reflexão e detalhar os mecanismos de atuação dos grupos sectários. Infelizmente eles são sutis e podem estar até mesmo atuando dentro da nossa Igreja Católica, sob a forma aparente de grupos de apoio, de oração, de estudo, de comunidades religiosas, etc. No próximo artigo falarei mais profundamente sobre isso, usando como base um livro do Prior da Grande Cartuxa.
Indicações de documentários
Wild Wild Country, Netflix
Nada ortodoxa, Netflix
Rezar e obedecer, Netflix
Referências
– A psicologia das seitas – Estudyando
–Seita: Por que me juntei a uma – e como consegui sair dela – BBC News Brasil
– Como as Seitas Controlam a Mente dos Adeptos? – CACP – Ministério Apologético
Terapeuta e Escritora