Espiritualidade,  Psicologia

Quando um líder religioso é condenado por abusos

Tempo de leitura: 8 minutos

O que podemos refletir a partir de casos em que líderes espirituais são condenados por abusos sexuais e psicológicos? Sejam homens ou mulheres, a punição civil ou canônica destes indivíduos provoca uma miríade de sentimentos ambivalentes e comoção social.

O primado da vítima

Em primeiro lugar, precisamos dar o primado da vítima. Elas devem estar no centro de tudo.  «Um membro sofre? Todos os outros membros sofrem com ele» (1 Co 12, 26). Deve ser nossa a dor de cada vítima. Como Igreja, também devemos pedir perdão e refletir sobre como podemos prevenir que situações assim aconteçam. Oferecer recursos para que essas vítimas se sintam acolhidas e amparadas. Precisamos reconhecer humildemente e confessar os erros cometidos, apoiar os sobreviventes. Todos precisamos tomar cuidado com discursos e ações que revitimizem os afetados; frases pesadas que jogam sobre as vítimas culpa, que tentam controlar suas narrativas, que tentam responsabilizá-las pelo crime, as defesas irresponsáveis pelo abusador, as tentativas de silenciar as vítimas impedindo que contem sua própria história.

Obrigada a todas as vítimas que levantaram a sua voz, tiveram a coragem de lutar por justiça, que enfrentaram seus próprios fantasmas internos, medos e fizeram o possível para que o mal fosse freado. Sinto muito por todas as suas experiências de dor, por suas feridas, pelas vezes em que foram incompreendidas e silenciadas. Toda vítima tem o direito de contar a sua história, buscar e receber justiça e apoio.

“Pedir perdão é necessário, mas não é suficiente. Pedir perdão é bom para as vítimas, porque são elas que devem estar “no centro” de tudo. A sua dor, os seus danos psicológicos podem começar a cicatrizar se encontrarem respostas; ações concretas para reparar os horrores que sofreram e evitar que se repitam.”

Quando pensamos em vítimas não nos referimos apenas aquelas primárias que sofreram diretamente os abusos, mas também às secundárias, ou seja, todas aquelas que indiretamente sofrem o impacto psicológico e espiritual deste choque. As famílias das vítimas primárias, a comunidade ou grupo religioso, pessoas que se relacionavam com aquele que foi condenado, as suas autoridades diretas, enfim, todos aqueles que também na sociedade ou no corpo eclesial se sentem abalados pela situação. Apoiemos e rezemos por todas as vítimas, para que recebam de Deus o conforto, o consolo e a cura.

“Rezemos pelos que sofrem por causa do mal cometido pelos membros da comunidade eclesial: para que encontrem na própria Igreja uma resposta concreta às suas dores e aos seus sofrimentos”.

A mídia

Diante de casos assim podemos nos questionar sobre a mídia e o escândalo. Não cabe mais a ideia de proteger a imagem da Instituição como desculpa para acobertar os abusos. Se durante muito tempo – e ainda hoje em determinados ambientes e figuras – esta é a ação escolhida, isso vai contra a Política vigente dentro da Igreja Católica. Seguindo a Política da Tolerância Zero, os princípios da Responsabilidade, Prestação de Contas e Transparência pedem explicitamente que as vítimas sejam ouvidas, que as denúncias sejam acolhidas e investigadas, que crimes sejam punidos tanto canônica quando civilmente (inclusive autoridades que acobertaram) e que todo o processo seja dito com clareza para os envolvidos e para a sociedade.

Nesse sentido temos que faz parte do papel da mídia o de informar. Nem sempre este papel é prestado com clareza, trazendo também fake News e informações distorcidas, muitas vezes enviesando os casos de abusos em contexto católico a partir de uma perspectiva que deforma a situação. Contudo, quando feito dentro dos seus limites éticos e apropriados, a mídia tem papel fundamental na divulgação da informação. E devemos agradecer por darem voz às vítimas e ajudarem na promoção da verdade.

Eu gostaria de agradecer sinceramente aos operadores dos mass media que foram honestos e objetivos e que procuraram desmascarar estes lobos e dar voz às vítimas. Mesmo que se tratasse de um único caso de abuso – que de per si já constitui uma monstruosidade –, a Igreja pede que não seja silenciado mas o tragam objetivamente à luz, porque o maior escândalo nesta matéria é o de encobrir a verdade.

Abusos em todos os lugares

Lamentavelmente ainda encontramos lentidão e autoridades incompetentes quanto ao manejo dos casos de abusos dentro da Igreja. Isso também nos recorda que a comunidade cristã não é composta apenas de pessoas íntegras. Contudo, essa não é uma realidade exclusiva da Igreja. A crise dos abusos é um drama e flagelo social. Toda a humanidade tem padecido.

Como bem relata o pe. Zollner no livro “Igreja e Pedofilia, uma ferida aberta”, muitas vezes a mídia fornece uma imagem distorcida das dimensões da ocorrência, transformando os abusos sexuais em contexto eclesial em um fenômeno social chamado Pânico Moral. Quem cunhou este termo foi o Ph. Jenkins após uma série de estudos, onde mostrou que a questão dos padres pedófilos é um desses exemplos. Se se compara a Igreja Católica dos EUA com as principais denominações protestantes, descobre-se que a presença de pedófilos é de 2 a 10 vezes mais alta entre os pastores do que entre os padres (o que deixa bem evidente que o problema não é o celibato, já que os pastores são casados). No mesmo período em que 100 sacerdotes norte-americanos eram condenados por abusos sexuais contra menores, o número de professores de ginástica e de treinadores de times esportivos juvenis considerados culpados pelo mesmo crime pelos tribunais estadunidenses beirava os 6 mil. Sobretudo, segundo os periódicos relatórios do governo americano, cerca de 2/3 dos molestamentos sexuais contra menores não partem de estranhos, mas de familiares. Dados semelhantes existem para numerosos outros países.

No recém-lançado “Pedofilia na Igreja, um dossiê inédito” temos o relato do Phd Thomas Plante, psicólogo que trabalha diretamente com a temática e inclusive com livros publicados, onde ele relata que “os clérigos católicos não estão entre os que causam risco mais alto ao longo dos anos, mas são os que têm mais divulgação devido à questão do celibato e à hipocrisia de serem padres”. Inclusive ele afirma que nos últimos anos os números de padres pedófilos diminuíram devido às mudanças institucionais e a atenção a problemática. Segundo ele, na última metade do século XX havia uma estimativa de 4% e hoje o número é inferior a 1%.

Quando falamos sobre abusos temos de ter em mente que não nos referimos apenas aos menores de idade, mas também aqueles que são perpetrados contra mulheres ou homens adultos. Sejam abusos sexuais, abusos de poder, de consciência, financeiros, maltratos ou violências morais ou físicas. Como sociedade, devemos trabalhar ativamente em prol de uma renovação da forma de se relacionar.

Seja no âmbito civil ou canônico a justiça é necessária. É preciso reparar o mal que foi feito e também impedir que esse mal continue atuando. Além disso, as punições também são um serviço de caridade para com quem comete o crime. Precisamos de espaços eclesiais para denúncias que sejam verdadeiramente eficientes, que ajam de forma rápida e correta, não de órgãos fantasmas e autoridades incompetentes. O que causa escândalo não é a verdade sendo exposta, mas a mentira e o mal acobertados e impunes. Situações assim servem para mostrar a potência da Igreja em ser exemplo agindo com retidão, transparência, honestidade e sensibilidade.

Fique claro que a Igreja, perante estes abomínios, não poupará esforços fazendo tudo o que for necessário para entregar à justiça toda a pessoa que tenha cometido tais delitos. A Igreja não procurará jamais dissimular ou subestimar qualquer um destes casos. É inegável que no passado alguns responsáveis, por irreflexão, incredulidade, falta de preparação, inexperiência – devemos julgar o passado com a hermenêutica de então – ou por superficialidade espiritual e humana, trataram muitos casos sem a devida seriedade e prontidão. Isto nunca mais deve acontecer. Esta é a opção e a decisão de toda a Igreja.

Desejo expressar às vítimas minha tristeza e meu pesar pelos traumas sofridos e minha vergonha, nossa vergonha, pela demasiada longa incapacidade da Igreja em colocá-las no centro de suas preocupações, assegurando-lhes minhas orações. Rezo e todos nós rezamos juntos: “A ti, Senhor, a glória, a nós a vergonha”: este é o momento da vergonha. Encorajo os bispos e vocês, queridos irmãos que vieram aqui para compartilhar este momento, encorajo os bispos e superiores religiosos a continuarem fazendo todos os esforços para garantir que dramas semelhantes não se repitam.

Este é um excelente discurso do Papa sobre a crise dos abusos: Encontro “A Proteção dos Menores na Igreja”: Discurso do Santo Padre no final da Concelebração Eucarística (24 de fevereiro de 2019) | Francisco (vatican.va)

Amadurecimento da fé

Quando casos assim vêm à tona, todos somos chamados a viver um momento de reflexão. Cernuzio em “O véu do silêncio” nos recorda através da citação de um trecho do Documento Preparatório para o Sínodo que “não podemos esconder de nós que a própria Igreja deve enfrentar a falta de fé e a corrupção também em seu interior. Como povo de Deus somos continuamente interpelados a assumir a dor de nossos irmãos e irmãs feridos na carne e no espírito.”

Esses momentos nos atravessam com desconforto, colocando em prova a nossa fé em Deus e a nossa confiança na Instituição (a Igreja). São oportunidades de amadurecer a forma como nos relacionamos com as autoridades, compreendendo que há lobos em peles de cordeiro. Que mesmo a Igreja está permeada de sombras. Há pessoas que se aproveitam das estruturas religiosas para fazer o mal. Que corrompem a própria vocação e usam a Deus, a fé e a boa vontade das pessoas para os seus próprios interesses e necessidades.

Eu sei, para muitos é extremamente chocante se deparar com essa realidade. Mas é necessário deixar de ser ingênuo. As decepções são indispensáveis para vermos a realidade com maior clareza e amadurecermos. Inclusive para não cairmos nessas situações de abusos. Também é preciso desfazer a postura defensiva, aquela tendência a não querer assumir a verdade, a manter as coisas escondidas e a considerar as vítimas como uma ameaça. Falar abertamente sobre os problemas relacionados aos abusos em contexto eclesial é indispensável para a prevenção e a reparação.

Hoje, também existem tantos «ungidos do Senhor», homens consagrados, que abusam dos fracos, valendo-se do seu poder moral e de persuasão. Cometem abomínios e continuam a exercer o seu ministério como se nada tivesse acontecido; não temem a Deus nem o seu juízo, mas apenas ser descobertos e desmascarados. Ministros, que dilaceram o corpo da Igreja, causando escândalos e desacreditando a missão salvífica da Igreja e os sacrifícios de muitos dos seus irmãos. (…) Os pecados e crimes das pessoas consagradas matizam-se de cores ainda mais foscas de infidelidade, de vergonha e deformam o rosto da Igreja, minando a sua credibilidade. De facto, a própria Igreja, juntamente com os seus filhos fiéis, é vítima destas infidelidades e destes verdadeiros «crimes de peculato».

Conscientes desta realidade, somos todos chamados a transformar a cultura através da espiritualidade do cuidado. Tanto no âmbito eclesial quanto nos demais ambientes em que levamos a vida comum, somos convidados a levar a cultura do bom trato e a consciência da dignidade de cada ser humano.

Também é interessante nos questionarmos sobre as relações que temos com as lideranças religiosas, o grau de proteção e imputabilidade que eles às vezes recebem, a alta credibilidade, o controle obsessivo e exclusivo sobre determinado grupo. Nada disso é saudável. Um grupo religioso que se torna dependente do seu líder sofrerá ainda mais quando houver a quebra da idolatria e da idealização. Ainda assim, é possível que os grupos se reergam e encontrem seu caminho após a dura experiência de verem a sombra de seu líder e estarem privados da cabeça que até então os guiava.

Em momentos difíceis e de grandes emoções é frutuoso que nos voltemos para dentro de nós mesmos e para Deus, no silêncio e na contemplação, para desembolar os sentimentos e compreender melhor o que aconteceu em vez de simplesmente reagir. É preciso dar espaço para o luto, para a morte das expectativas, idealizações, posturas defensivas. Não partir para o extremo de considerar que tudo está perdido. Ainda há esperança e vida.

O abusador

Partindo de uma ótica cristã não nos tornamos alheios ao abusador. Por justiça e caridade ele deve reparar os seus crimes, sendo julgado e penalizado tanto civil quanto canonicamente. Contudo, também deve ser acompanhado com nossas orações e experimentar a misericórdia de Deus, o arrependimento dos seus pecados e uma busca sincera pela conversão.

E a quantos abusam dos menores [ou de qualquer pessoa], gostaria de dizer: convertei-vos, entregai-vos à justiça humana e preparai-vos para a justiça divina.

  • Todos os itálicos são citações diretas do Papa Francisco

Referências

https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-03/papa-francisco-mensagem-video-vitimas-abuso-igreja-perdao.html

https://expresso.pt/sociedade/2021-11-14-Papa-Francisco-agradece-aos-jornalistas-por-denunciarem-os-abusos-da-igreja-9d3ca60a

Abusos na França, o Papa: é o momento da vergonha, minha e nossa – Vatican News

À Cúria Romana, por ocasião das felicitações de Natal (21 de dezembro de 2018) | Francisco (vatican.va)

Terapeuta e Escritora

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