Espiritualidade,  Psicologia

Saúde mental na Vida Consagrada

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Ao contrário do que se costuma esperar ou imaginar, problemas de saúde mental atingem os religiosos. A vida consagrada não está imune a uma miríade de situações como burnout, depressão, ansiedade, crises de pânico, compulsões, vícios, crises afetivas, questões relativas à sexualidade, ideação suicida, suicídio, doenças psicossomáticas, alucinações, neuroses, exaustão, estresse agudo, TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) religioso, fobias, abusos, transtornos de personalidade, entre outros.

Segundo as pesquisas do Pe. Lício, de agosto de 2016 a junho de 2023, 40 padres se suicidaram no Brasil. O suicídio é um fenômeno complexo e multifatorial. No caso dos padres, vários estudos apontam que os principais fatores de risco são o estresse, a solidão e a cobrança excessiva. [1]

Sanagiotto em uma de suas pesquisas, identifica que a síndrome de burnout entre as religiosas consagradas brasileiras se define por médios níveis de exaurimento emotivo que, basicamente se caracteriza pela sensação de estar em contínua tensão e emotivamente “vazio” no relacionamento com os outros e com o próprio trabalho; por altos índices de despersonalização, que se caracteriza pela atitude negativa no relacionamento com as pessoas destinatárias do serviço prestado; enfim, mesmo diante do exaurimento emotivo e da despersonalização, as religiosas consagradas se descrevem com altos índices de realização pessoal. [2]

Uma pesquisa da Universidade de Salamanca, na Espanha, ouviu 881 sacerdotes de três países (México, Costa Rica e Porto Rico) e identificou incidência alta de transtornos relacionados à atividade. “Três em cada cinco experimentavam graus médios ou avançados de burnout, a síndrome do esgotamento profissional”, registrou a autora da pesquisa, Helena de Mézerville, no livro O Desgaste na Vida Sacerdotal. [3]

A vocação à vida religiosa consagrada e presbiteral é desafiadora nos seus diversos aspectos, principalmente no que diz respeito à práxis pastoral. A missão confiada a um presbítero ou a um religioso consagrado representa muito mais que um trabalho – é um compromisso vocacional com aqueles que lhe foram confiados. Porém, além do aspecto teológico que caracteriza a vocação, historicamente é possível individuar uma preocupação em torno a saúde mental do clero e dos religiosos consagrados (Moore, 1936; Segreteria di Stato del Vaticano, 1938). Existe um determinado tipo de envolvimento pastoral que pode ser desadaptativo e, em certos casos, pode desencadear comportamentos disfuncionais e até mesmo certas psicopatologias (Knox et al., 2007; Pinkus, 2010). [4]

Há um contexto complexo que circunda a dimensão psicológica dos consagrados. Sejam padres, bispos, freiras, religiosos ou leigos consagrados, todos eles apontam para uma questão primariamente simbólica sobre a imagem que ocupam como <consagrados> tanto no próprio imaginário, quanto no da sociedade e da comunidade eclesial. Essa imagem diz respeito ao papel que simbolicamente se atribui aos indivíduos consagrados: o de pessoas perfeitas, que resolvem tudo com a espiritualidade, que não apresentam fraquezas nem problemas, impassíveis de dilemas humanos, que suportam tudo, enfim, um papel de super-heróis ou semideuses.

Esse papel desumaniza os consagrados, ou seja, retira deles a sua preciosa e real humanidade. Por isso pesam sobre estes indivíduos um perfeccionismo, uma alta pressão, além de expectativas surreais (como a da disponibilidade 24h e da ausência de falhas). Dessa forma, estão sempre vivendo sob uma alta cobrança, tanto sobre si mesmo, quanto a respeito da comunidade eclesial e da sociedade. Espera-se dessas pessoas que sejam de determinado modo, que se encaixem em um padrão arquetípico que desconsidera a sua humanidade (logo, todas as suas fragilidades e vulnerabilidades naturais).

A busca pelo caminho da perfeição evangélica e os inúmeros compromissos missionários tendem a ocultar a figura humana, frágil e necessitada que há em todo homem e mulher, independentemente da sua vocação. Quanto mais forte essa imagem, mais difícil torna-se reconhecer alguma questão de saúde mental. Há diversos motivos para que isso aconteça. Em primeiro lugar, pela dificuldade que o consagrado tem de assumir para si mesmo que está passando por algum problema psicológico. Isso envolve a concepção que ele tem a respeito do <ser consagrado>. Problemas de saúde mental acabam trazendo sentimentos desafiadores como medo, vergonha, culpa e humilhação, por serem considerados uma <fraqueza> em vez de uma questão humana.

Muitas vezes por estar inserido em uma estrutura comunitária muito exigente e que negligencia completamente a dimensão psicológica dos membros, o consagrado não encontra espaço acolhedor que lhe permita compartilhar suas dificuldades e dores. Infelizmente, há estruturas comunitárias em que se negam os problemas da ordem da saúde mental ou os classificam como “espirituais”. Por exemplo, consideram a depressão como ‘falta de Deus’, classificam outros sintomas e psicopatologias como ‘falta de conversão’, ‘preguiça’, ‘necessidade de rezar mais’, ‘tentações demoníacas’, ‘falta de virtude’, entre outros. Chegando até mesmo a incorrer em casos de abuso de autoridade e poder, quando privam o indivíduo de medicamentos e atendimento psicológico necessário e adequado.

É inegável que as exigências próprias da Vida Consagrada e a linguagem religiosa podem favorecer irrevogavelmente o sofrimento mental quando são interpretadas e praticadas de forma disfuncional. Entendo como forma disfuncional quando não levam em conta a dignidade do indivíduo, negligenciando a atenção e o cuidado para com este. Ou quando colocam as necessidades institucionais acima das do indivíduo. Assim, por exemplo, recusam-se a promover acompanhamento terapêutico adequado aos que manifestam sintomas na esfera psicológica, utilizam-se da linguagem religiosa para manipular as consciências levando-as cada vez mais acima do limite pessoal e justificando até mesmo práticas abusivas ou pensamentos neuróticos e que deformam a autoestima do consagrado.

Múltiplos fatores atuam em conjunto na vida dos consagrados. A falta de um espaço acolhedor e de atenção cuidadosa ao indivíduo acabam retardando a procura por ajuda psicoterapêutica, agravando o estado e, infelizmente, muitas vezes levando o indivíduo a se envolver em escândalos e acontecimentos limítrofes. É o que relata o psicoterapeuta Ênio Brito Pinto especialista em atendimento a consagrados, em seu livro ‘Os padres em psicoterapia’. Esta situação demonstra claramente que no âmbito da Vida Consagrada ainda existe um preconceito latente com a necessidade de encarar a dimensão psicológica dos consagrados, com o processo psicoterapêutico e com a promoção da saúde mental através da formação humana-afetiva dos membros.  

Toda a comunidade eclesial precisa conscientizar-se a este respeito. Dessa forma, conseguiremos diminuir as expectativas desleais sobre os consagrados, diminuindo a pressão que existe sobre eles. Além disso, é preciso dar apoio a estes irmãos através da amizade e do cuidado. É necessário também fazer as devidas ressalvas, porque há muitos casos em que as problemáticas psicológicas são devidamente acolhidas, amparadas, encaminhadas e trabalhadas. Há ambientes eclesiais comprometidos com a saúde mental e com olhar atento sobre os seus membros consagrados.

Por serem humanos, os consagrados também enfrentam problemas de saúde mental. E isso não deve ser normalizado como algo positivo dentro da Vida Consagrada. Isto é um problema e precisa ser tratado e solucionado. Para tal, os consagrados precisam encontrar inicialmente uma formação adequada para sua dimensão psicológica, humana-afetiva. Inteligência emocional, afetividade, autoconhecimento são indispensáveis. Além disso, precisa-se promover uma cultura do cuidado que olhe com atenção para cada indivíduo, com toda a dignidade que ele tem. Dessa forma, inseridos em um ambiente acolhedor, os consagrados poderão exercer ainda melhor a alta vocação a qual estão chamados, sentindo-se ainda mais realizados.

O documento do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, ressalta que “às vezes o sincero desejo de servir à Igreja, o apego às obras do instituto, bem como as prementes solicitações da Igreja particular podem facilmente levar religiosos e religiosas a sobrecarregar-se de trabalho”. O documento prossegue afirmando que “o recurso a tais intervenções [acompanhamento profissional] tem se revelado útil não só no momento terapêutico em casos de psicopatologia mais ou menos manifesta, mas também no momento preventivo para ajudar a uma adequada seleção dos candidatos e para acompanhar, em alguns casos, a equipe de formadores a afrontar específicos problemas pedagógico-formativos”. [5]

Como reitera o padre Lício, “é relevante reconhecer a importância e urgência de uma melhor formação inicial nos seminários e noviciados (trabalhando mais efetivamente a dimensão humano-afetiva), a criação de estratégias pastorais mais apropriadas não só para a formação permanente, mas também para o cuidado dos próprios sacerdotes, como também enfrentar o medo e o preconceito em relação à saúde mental dos presbíteros.” E não apenas dos sacerdotes, mas em toda a vasta realidade que compõe a Vida Consagrada.

[1] Padre Lício: O suicídio de padres no Brasil – Vatican News

[2] A síndrome de burnout na Vida Religiosa Consagrada feminina brasileira – Vatican News

[3] Depressão no altar: quando padres e sacerdotes precisam de ajuda – BBC News Brasil

[4] A relação entre inteligência emocional e os domínios de personalidade psicopatológicos entre os padres e religiosos brasileiros. Vagner Sanagiotto e Aureliano Pacciolla, 2022.

[5] A VIDA FRATERNA EM COMUNIDADE (vatican.va)

Terapeuta e Escritora

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