Espiritualidade,  Psicologia

“Não vos chamo servos”- Abusos de poder e de consciência

Tempo de leitura: 18 minutos

O texto abaixo é uma tradução livre do artigo “No os llamo siervos; sois mis amigos” (Jn 15, 15): Abusos
de poder y de conciencia en la Vida Consagrada” de ALEJANDRO LABAJOS, SJ – Santuario y Centro
de Espiritualidad de Loyola. Agradeço de forma especial ao amigo Dante Ricardo C. Aragón, scv., da Reconciliatio quem generosamente me enviou este artigo tão importante.

Deixo três ressalvas:

  • A tradução é livre e o texto está ipsis litteris, ou seja, não conta com comentários meus.
  • VC é sigla para Vida Consagrada; contudo, todo o artigo pode ser aplicado à diversas dinâmicas, grupos ou pessoas dentro da Igreja Católica.

Abusos de poder e consciência na Vida Consagrada

                                         (Alejandro Labajos, SJ – Santuario y Centro de espiritualidade de Loyola)

O recente caso de Enzo Bianchi e a Comunidade de Bose, cuja “situação tensa e problemática quanto ao exercício da autoridade do fundador, a gestão do governo e o clima fraterno” obrigou a Santa Sé a intervir, trazendo à luz um fenômeno interno que afeta a toda a vida religiosa e monástica, institutos clericais, laicais, masculinos e femininos, antigos e novos:  os abusos de poder e consciência na Vida Consagrada. Como identificá-los? Como preveni-los, como combatê-los?… O Papa Francisco nos chama a desterrar essa dinâmica perversa, que prejudica gravemente o corpo eclesial e a acabar com o silêncio cúmplice que a alimenta.

Deitado no chão está George Floyd, um menino negro de Minneapolis. O joelho de um policial pressionando seu pescoço lhe rouba o ar. Ouve-se um grito abafado: “Não consigo respirar.” Momentos depois morreu sufocado, vítima de um atentado justificado como mecanismo de “paz” social. E se houvesse na Vida Consagrada (VC) irmãos e irmãs nossos vivendo uma experiência semelhante? Morrem sufocados pela violência aceita em nome de Deus: abuso de poder, manipulação de consciência, desvio sectário… A analogia pode parecer exagerada, mas os dados a confirmam. Segundo a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, cerca de 4% dos institutos atuais – nos casos mais clamorosos – tiveram que enfrentar uma visita apostólica por esta causa. Os escândalos da mídia a esse respeito se sucedem. Algumas conferências episcopais estão criando comissões para cuidar das vítimas de desvios sectários em instituições católicas. Começam a haver publicações rigorosas. Os mais de 3.000 abandonos anuais de consagrados, também por causa das divisões internas e da busca pelo poder, eles o sugerem. No acompanhamento espiritual, o tema já é verbalizado com maior clareza.1

No entanto, na Igreja e nos institutos guardamos um silêncio incrédulo. Talvez tentando enfrentar o drama do abuso infantil, ainda não percebemos um fenômeno interno que afeta toda a vida religiosa e monástica, aos institutos clericais, laicais, masculinos e femininos, antigos e novo. Em um caso recente, o de Enzo Bianchi e a Comunidade de Bose, o comunicado de imprensa imposto pela Santa Sé fala de “situação tensa e problemática quanto ao exercício da autoridade do fundador, à gestão do governo e ao clima fraterno”. No entanto, talvez prevenindo o escândalo, não fala de abuso, embora haja vítimas do poder violento do fundador e seu entorno. Ainda não sabemos a veracidade das acusações contra Josef Kentenich sobre aspectos silenciados até agora por seu movimento schoenstattiano. Ele questiona que El Arca só tornou pública a investigação sobre os abusos cometidos por Jean Vanier logo após sua morte. Os casos – de gravidade diversa– se multiplicam. Por que calar?

Existem mecanismos na VC que podem se desviar para dinâmicas doentias e destrutivas. De acordo com o que Hans Zollner apontou em várias ocasiões, o problema é sistêmico: nas estruturas e nos procedimentos. “Onde eles dizem aqui não tem abuso, quer dizer que lá não tem conversa”2.  Abusos em nome da religião sempre existiram na VC. Pensemos no tratamento recebido no passado por muitos irmãos “leigos”. No entanto, falar sobre abuso espiritual é algo relativamente novo.

1. O abuso espiritual

O Papa Francisco nos alerta para um mal cuja origem se encontra em uma pessoa perversa que tece uma teia de aranha e envolve todos os âmbitos da vida e da missão de um instituto: “Existem diversos tipos de abuso: de poder, econômico, de consciência, sexual . É evidente a necessidade de desenraizar as formas de exercício da autoridade em que estão enxertadas, e de contrariar a falta de responsabilidade e transparência com que muitos dos casos são geridos. O desejo de domínio, a falta de diálogo e transparência, as formas de vida dupla, o vazio espiritual, bem como as fraquezas psicológicas são o terreno em que a corrupção prospera”. “Nos últimos tempos nos foi exigido com veemência que escutássemos o clamor das vítimas dos diferentes tipos de abusos perpetrados por alguns bispos, padres, religiosos e leigos. Esses pecados causam em suas vítimas ‘sofrimentos que podem durar toda a vida e os quais nenhum arrependimento pode remediar3.

O abuso de poder supõe um excesso no desempenho das próprias funções hierárquicas, pastorais ou espirituais, estabelecendo relações perversas e obrigando alguém em sua consciência para fortalecer seu próprio poder e imagem. O desvio sectário, como a forma mais radical de atentado contra a liberdade, é a apropriação de todo um contexto social. São verdadeiros sistemas que podem passar despercebidos dentro e fora de uma instituição. Se acrescentarmos a isso a dimensão espiritual, que toca aspectos muito profundos da estrutura da pessoa, estaremos diante de um abuso espiritual. Sua violência é real; suas consequências, devastadoras; o sofrimento causado, imenso.

Algumas peculiaridades tornam especialmente delicado o abuso espiritual na VC. Podemos identificar três elementos próprios:

• O florescimento de personalidades carismáticas sedutoras, hoje marcada por um forte perfil midiático.

• A linguagem religiosa, que muitas vezes é capaz de criar percepções ambíguas da realidade e justificar o mal recorrendo a palavras como entrega, dom de si, sacrifício, comunidade, missão, etc.

• E também o vínculo de obediência que caracteriza os relacionamentos com um tom particular e – no abuso – situa a pessoa que obedece diante de um dilema de consciência difícil de resolver.

Tudo isso pode decantar em uma cultura comunitária que encobre em nome da fé.

Florescimento de figuras carismáticas sedutoras

ME SEDUZISTES… No início trata-se da sedução, do direcionamento para si mesmo. Em institutos com longa história ou em novos, surgem figuras que vão estabelecendo seu perfil carismático no grupo. Sabem como se aproximar dos outros partindo de suas necessidades, oferecem propostas de significado e profecia. Falam de Deus e do Evangelho com uma paixão comovente. Sabem pronunciar “as grandes palavras” que fazem vibrar o coração. São guias cuja interpretação do carisma vai se impondo, fundadores de institutos ou “pequenos fundadores” de projetos inovadores, formadores de opinião persuasivos dentro e fora da comunidade, que aos poucos sobem aos cargos governamentais. Seus seguidores se reúnem ao seu redor porque conseguem se conectar com seus desejos mais sinceros, com suas necessidades e com seus desconfortos interiores. Muitos aspiram pertencer ao seu círculo privilegiado. Eles são reverenciados.

O problema surge quando tais líderes, com mecanismos muito sutis, manipulam os outros colocando-os a serviço de suas próprias causas de forma velada de predação4. Progressivamente, eles ocupam o lugar que corresponde somente a Cristo. Nesse sentido, as redes sociais e a mídia ajudam a amplificar seu comportamento. Se isso for somado – e misturado – ao acompanhamento de pessoas, a confissão, a formação, a possibilidade de abuso é ainda maior. A soma de autoridade espiritual, poder e sedução desencadeará no abuso espiritual. Assim recorda o Papa: «Alguns institutos novos parecem uma grande novidade, mostram uma grande força apostólica, arrastando atrás  de si a tantos e depois fracassando. Às vezes, há questões escandalosas por trás. (…) Eles nascem, não de um carisma do Espírito Santo, mas de um carisma humano que atrai por seus dons de fascinação”5.  “E mesmo em nossos tempos temos visto algumas organizações apostólicas que pareciam muito bem organizadas, que funcionavam bem… e depois descobrimos a corrupção que havia dentro, até inclusive dos fundadores”6. É necessário um sério discernimento, pois uma pessoa evangelicamente carismática não é o mesmo que uma pessoa bem-sucedida ou midiática.

Essas dinâmicas podem ser verificadas em pessoas que acabam falando de tudo e estando em tudo. Presentes em todas as comissões, são percebidos como expressão e garantia do carisma. Pode ser um membro da comunidade que inicialmente se mostra fiel, atraente, gerador de boas dinâmicas para a comunidade, corajoso; vendo o seu “sucesso”, a congregação deposita neles grandes esperanças, e ingressam num cursus honorum típico da VC: por exemplo, professor, formador, prior e, evidentemente, abade, cujo mandato durará ainda décadas – “assim quiseram os irmãos”, diz. Vão assumindo o controle da comunidade nos mínimos detalhes. Sem a sua palavra nada se move, às vezes por medo de outros que possam ter sido alvo de chantagens afetivas, promessas de responsabilidades e até ameaças veladas. A abertura de consciência lhes dá informações íntimas que reforçam sua posição.

Como um abade comentou sobre outro: “Alguns de seus irmãos reclamam de sua onipresença e controle, mas no final ele é o único capaz de levar as coisas adiante.” Claro, sempre para o “bem da comunidade” e sob o pretexto da cooperação. A clausura, quando acarreta isolamento, reforça essa dinâmica. Se o problema “explodir”, muitas vezes você sobe na hierarquia para tirá-lo do caminho.

O perfil psicológico é complexo. Há quem os rotule como narcisistas perversos. Eles sabem o que estão fazendo e sua forma de agir é um hábito profundamente enraizado. O assediador pode apresentar um quadro afetivo complicado na infância. Em casos como os de Th. Philippe, Bianchi ou Kentenich, entre outros, o que se refere à sua infância permanece obscuro. Anos atrás, o psicólogo Paul-Claude Racamier apontou que é alguém com a necessidade, a capacidade e o prazer de se proteger de seus próprios conflitos internos impondo-se aos outros. A felicidade de suas futuras vítimas – aquelas que dentro do grupo não se deixam deslumbrar – é insuportável para ele, pois o lembra de sua fragilidade interna. Tendem a ser pessoas inseguras, afetivamente imaturos, que temem obsessivamente a rejeição. No entanto, são percebidos como pessoas corajosas, capazes de realizar seus planos com decisão. Eles competem com todos: você está com eles ou contra eles. E seduzem a tal ponto que quem sofre com seu domínio pode vir a agradecê-los por assumir o comando de uma organização: “Obrigado por aceitar o cargo”. Quando isso não acontece, o líder empurra a pessoa para o lado e a assedia sutilmente. Se suas manipulações vierem à tona, atuará bem fazendo-se de vítima e negando-as, ou espalhando boatos, mensagens confusas, etc. A habilidade fundamental do abusador e mais ainda no âmbito espiritual, é a linguagem7.

A nível espiritual, existe uma grande distância entre palavras e ações desses líderes. Eles não seguem os princípios da vida comum, porque existem “motivos espirituais ou pastorais” que o justificam. Na verdade, se trata de uma enfermidade do espírito com dois aspectos. Em primeiro lugar, surge uma questão de paternidade/maternidade espiritual, porque se confunde esta – que deve possibilitar o crescimento em liberdade – com controle, superproteção, submissão, etc. Em segundo lugar, toca um aspecto da vivência íntegra da castidade – isto é, da renúncia a exercer qualquer tipo de posse do outro. Não é incomum que, afetando a obediência e a castidade, muitos desses comportamentos estejam associados a problemas que afetam a sexualidade e pouca transparência econômica. Em suas relações com a Igreja, tendem a ser muito críticos –pelo menos internamente–, acusando-a de posições muito abertas que se distanciam da “Verdade” ou muito conservadoras que se distanciam do mundo de hoje. Paradoxalmente, tecem uma teia com as figuras eclesiásticas do momento e tem bons contatos com a hierarquia.

E ME DEIXEI SEDUZIR… A priori, pensaríamos que a vítima de abuso é débil ou problemática. Mas numerosos estudos mostram que qualquer um pode padecê-los. No caso do abuso espiritual, geralmente se trata de pessoas engajadas em uma generosa busca vital, com grande desejo de se comprometer e se entregar a Deus. Têm boa capacidade de doação. Às vezes, passam por momentos de resituação [palavra original por falta de tradução] vital. Isso os coloca em um cenário normal de fragilidade identitária –seja porque buscam sua vocação, seja porque têm de enfrentar as questões da meia-idade ou alguma crise vital -. Nessa etapa, eles encontram um líder ou um grupo que oferece os meios para realizar sua busca: alguém que forjou uma aura espiritual e parece ter respostas para tudo. E o “seduzido” entrega-se com confiança ao que parece ser um sinal de Deus. Se sente muito bem-vindo, inclusive alguém especial que contará com a confiança do líder. O assediador quase sempre seleciona a mesma tipologia: pessoas cujas características pessoais (talento, ética, experiência religiosa, independência, nível de treinamento, até atratividade física) desperta nele inveja – especialistas como H. Leymann, T. Field, M.-F. Hirigoyen concordam e R. Namie–. De certa forma, alimentam seu profundo sentimento de inadequação pessoal8. Através do jogo da sedução “espiritual”, sufocam a autoconfiança de suas vítimas, fomentando dependências e submissões doentias9. Infelizmente, certas formas de viver a obediência na VC reforçam essa dinâmica.

Quando essas pessoas começam a perceber e denunciar o que não está funcionando (por exemplo, corrupção, privilégios, situação de outras vítimas…), o líder irá contra eles. Não querem olhar para o outro lado. Respeitam as hierarquias, mas não o servilismo, e ousam questionar práticas cotidianas que não condizem com os princípios que o grupo empunha como bandeira pública. Sua postura ameaça o status quo. Mas, então, a hostilidade contra a vítima cresce –muitas vezes de forma dissimulada–: seus desejos e suas necessidades, mesmo as mais simples, serão sistematicamente anuladas, primeiro pela sedução e depois pela chantagem. São castigados por motivos “religiosos” –por exemplo, com um destino ou tirando suas responsabilidades, são humilhados publicamente com comentários irônicos, recebem mesquinhos gestos desestabilizadores, insinuações, descrédito, são evitados, etc.–. Quem

assedia alterna ambiguamente maus tratos e bons tratos (muitas vezes, em pequenos detalhes insignificantes).

A arte do manipulador consiste em fazer com que os subjugados participem desse jogo “livremente”. Daí a dificuldade de reconhecer sua verdadeira face. O superior, o fundador, o líder carismático, a personalidade da mídia, dão o tom e todos os seguem. Ninguém questiona a legitimidade de seu comportamento e a vítima tende a pensar que ela mesma está errada. Se alguém “der errado” são convidados a se converter, a não trair a ordem, a não escandalizar, se esforçar mais ou é punido de alguma forma “para seu próprio bem”. A pessoa aceita essa violência porque acha que justifica uma melhor resposta à própria vocação e fidelidade ao Evangelho.

Assim, seu sofrimento interior aumenta até se tornar insuportável. “O que eu fiz para receber esse tratamento? Por que a mim?”. Não encontrando uma resposta clara, sua dissonância interna aumenta. Pode-se dar também a justificação do agressor e uma autoincriminação irracional também podem ser dadas. Autopunição (por exemplo, fazer sacrifícios religiosos ou mais penitência) e as atitudes que o acompanham aumentam a estigmatização pelo meio. O veneno é instilado quase sem perceber, deixando um misto de autodesvalorização e sugestão em relação ao líder. Um dos denunciantes de um ex-religioso, mestre de noviços há dez anos e superior maior há cinco, grande influência em sua província há 30, resumiu assim: “É como denunciar o pai na própria família”. A capacidade de discernimento é alterada. Consciência, paralisada. Identidade e liberdade são quebradas. Dom Dysmas de Lassus, Prior Geral dos Cartuxos, em obra de referência sobre o assunto, aponta como as pessoas são marcadas seriamente, até para o resto da vida10. Pensamentos e tentativas suicidas ocorrem com frequência; outros perdem completamente a fé; eles são incapazes de perdoar a Igreja que tolera, encobre e se recusa a sancionar.

É preciso muita força e coragem para vencer a culpa, a desorientação e sair desse processo. O instituto precisará de tempo para dar-se conta. De fora, é muito difícil perceber os abusos: os frutos parecem uma bênção (zelo, vocações, dinheiro, prestígio eclesial ou imagem pública). Por isso, quando os abusos espirituais começam a ser descobertos, eles parecem pouco críveis.

A manipulação da linguagem no abuso espiritual

A habilidade favorita de quem abusa é a linguagem. A linguagem religiosa é muito suscetível de manipulação porque recorre a argumentos de autoridade: Deus, o Evangelho, a Regra, a palavra do fundador… Além disso, toca em aspectos afetivos profundos. Todo ditador sabe que as palavras despertam emoções e, portanto, tende a espiritualizar sua mensagem11. Enfurece, entusiasma, culpabiliza, atemoriza. Um líder espiritual perverso geralmente consegue contar a história da comunidade para seu próprio benefício. A linguagem lhe serve para controlar e construir uma realidade adequada aos seus interesses: «o fundador quis…», «o nosso modo de proceder é…», «o Evangelho pede-nos…». Maneja as palavras que os outros esperam ouvir e as que estão na moda (também em VC: intercongregacional, liderança, colaboração, interioridade, fidelidade criativa ou cultura de prevenção). É assim que seu poder aumenta – mesmo que suas obras sejam incoerentes. Ele sabe afirmar algo e seu contrário, eliminando a possibilidade de crítica. Diz sem dizer. Contesta com evasivas. Ele ataca brincando, mas sua ambiguidade é tanta que você nunca tem certeza se ele está falando sério. Ele é capaz de reinterpretar uma situação preservando a aparência de uma boa pessoa. “Eu te digo isso por afeto.”

Se seus truques forem comprovados, ele se apresentará como vítima. Raramente qualificará suas palavras. Usará meias verdades. Não é o mesmo dizer: “três irmãos pensam que…” que dizer: “a comunidade pensa que você”; nem dizer “eu quero que você faça isso…”, que “a congregação ou Deus te pede”. Acrescentam-se outros mecanismos de manipulação não verbal: pequenos gestos, silêncios violentos, indiferença, olhares desdenhosos… Uma vítima recorda como seu fundador lhe disse: “Se você trouxer esses problemas à tona, eu cometerei suicídio, mas primeiro vou destruí-lo na imprensa.” Essa violência pode ser tão perigosa ou mais do que física12.

Finalmente, devemos acrescentar que, no contexto do abuso, mentiras – junto com sigilo – são um recurso onipresente e transformado em prática comum. Dom Dysmas comenta que essa cultura da mentira encontra na VC elementos que favorecem sua difusão. A virtude da obediência incita a confiar no superior, a não pedir explicações sobre tudo. A discrição ensina a não contar fora o que acontece dentro de casa. Disfarça-se a realidade para pessoas que têm autoridade (por exemplo, um bispo, um superior geral ou um visitante)13. A esse respeito, uma ex-religiosa que sofreu graves abusos espirituais apontou: “tornei-me cúmplice de um sistema doente”14.

2. Cultura comunitária do abuso

O fenômeno do abuso espiritual – como os outros – nunca é separado da trama do grupo em que eles acontecem. O processo descrito é agravado quando o ambiente desconfia da vítima. Seduzida, o grupo a faz ver que o problema é ela e sua percepção negativa da realidade. Esse mecanismo perverso pode ser explicado pelo chamado erro fundamental de atribuição: explicamos os comportamentos de uma pessoa com base em suas supostas características internas, ao invés de procurar razões no contexto social ou outros fatores. Nessa dinâmica, todos se tornam participantes. “O caruncho do poder”, como intitulou um jornal italiano seu comentário sobre o caso de Bianchi e a Comunidade Bose, avança silenciosamente enfraquecendo pessoas e instituições. Quando estouram os escândalos, toda a responsabilidade recai sobre o sujeito abusador, mas qual é a parte que cabe à comunidade ou ao instituto? Alguns elementos “ambientais” favorecem esse tipo de deriva.

  • Elitismo da Igreja. Nesses institutos circula ima espécie de presunção: “Fora do nosso grupo não há salvação”. Acreditamos que somos humildes e também os melhores. Consideram-se autossuficientes no discernimento, na formação e no  acompanhamento. Aqueles de fora são considerados incapazes de compreender o próprio carisma. A chave é como o grupo está posicionado em relação ao corpo eclesial em sua práxis concreta –não só nos textos de referência–. Esta atitude não se resume a progressistas ou conservadores. Ocorre em todos os lugares. Uma vítima de uma família monástica testemunhou: “Havia uma atmosfera de elitismo exacerbado. Gostávamos de evocar uma frase que monsenhor Renard, então bispo de Versalhes e superior canônico da comunidade, havia dito à irmã Marie, a fundadora, nos anos 1950: ‘Minha irmã, você sempre agirá melhor do que os outros e é por isso que a você nós sempre quereremos’. Esta frase simbolizava para nós o misterioso desígnio do instituto: uma superioridade incompreendida e ciumenta. Isso se expressava em comparação com outras instituições religiosas. Primeiro, as outras ordens monásticas ‘decadentes’ que criticávamos por terem cedido em sua observância religiosa. Em público, era necessário expressar nossa estima por eles. Depois vinham as instituições organizações apostólicas da Igreja: sacerdotes, comunidades apostólicas, bispos ou todas as outras formas de realidade eclesial, julgadas excessivamente pastorais e voltadas para o mundo, com uma espiritualidade muito pobre. A eles, porém, especialmente para o Papa e sua comitiva, fazíamos chegar apenas nossa apreciação positiva e elogiosa. Junto a esta superioridade dissimulada em relação à Igreja sempre se juntou uma certa desconfiança misturada com o medo”15.
  • A idolatria da unidade. Ainda que toda comunidade humana se configure em torno de um elemento próprio, será a liberdade a que qualificará sua verdadeira unidade. A vocação trapista poderia ser compreendida sem a solidão ou a vocação jesuíta sem a missão? Não, mas estas poderão integrar diferentes sensibilidades e modos de agir. Considere o caso de um fundador que gostava muito de arte e havia “proibido” os membros de sua comunidade de optarem por um certo pintor. Essa opinião – este é apenas um exemplo insignificante– transformou-se aos poucos em um “nós não gostamos” e um “nem pense em falar desse artista na presença do pai–”. Tornou-se habitual aquela forma de argumentar: “a gente pensa”, “porque o pai pensa”. O que aconteceu em aspectos mais decisivos? Questionar as afirmações do líder foi considerado uma ataque contra a fraternidade. Quando os abusos – por mais sutis que sejam– se instalam na engrenagem institucional da VC, então as pessoas parecem não ter mais o direito de pensar diferente do “oficial”, da corrente dominante, do fundador, do líder carismático ou do superior. E isso pode ser reforçado com uma boa gestão dos meios de comunicação e da publicidade. O caminho da vocação fraterna exige uma forte renúncia pessoal, mas nunca à custa da “despersonalização”.
  • Cobertura comunitária de abuso. Por que o grupo não reage? O indivíduo perverso reúne membros dóceis que vai seduzindo aos poucos. Se alguma pessoa não entrar no jogo, ela tenderá a ser isolada pelo grupo dominante. Os afins emulam o líder perverso, pois perdem progressivamente o senso crítico. S. Milgram, um conhecido psicólogo social, realizou um interessante estudo sobre a obediência à autoridade. Suas observações são úteis para qualquer hierarquia – também na VC–. Ele chegou à conclusão de que pessoas normais que não são particularmente hostis podem se tornar agentes de um atroz processo de destruição. A docilidade a um líder mantém seu equilíbrio emocional interno e ele o utiliza para seu próprio benefício e poder. Ele irá colocando seus pupilos. Além disso, o medo provoca comportamentos de “obediência”: favorece um silêncio em que “todo mundo sabe”, mas ninguém fala nada. “Salve-se quem puder!”. Uma espécie de confusão ambiental ainda mais confusa é criada quando argumentos religiosos são usados: “O Senhor está testando você”. Devemos nos perguntar se existem modos de proceder codificados em Regras e Constituições que legitimam estruturas abusivas assumidas por uma Igreja estruturalmente hierárquica – para o melhor e para o pior.
  • A negação da conduta abusiva. Dado que pôr em evidência ao fundador ou ao líder carismático cria desequilíbrios profundos em um instituto, se desenvolvem várias maneiras de normalizar o abuso. Em primeiro lugar, a zombaria ou a crítica ácida podem ser encorajadas contra aqueles que são desprestigiados pelo líder. Mas um humor saudável tem pouco a ver com degradação moral. Em segundo lugar, diz-se que qualquer relação entre seres humanos é conflituosa por causa das diferentes personalidades. Às vezes, fazem vista grossa, afirmando: “Cada um tem seu estilo de governar”. Em terceiro lugar, evoca-se a teoria de que “a letra com sangue entra”, acreditando que golpeando a alguém melhora a comunidade. Em quarto lugar, aponta para intimidade e amadurecimento pessoal: a vítima “tem que crescer”, evitando uma possível intervenção conflituosa. Além disso, nas novas fundações, são feitas alusões aos supostos direitos legítimos do fundador, já que ele é detentor do carisma recebido de Deus. Finalmente, as instituições costumam ser bastante imunes à autocrítica.

3. Os riscos da obediência

Cabe agora fazer algumas considerações finais sobre a obediência religiosa. Nela está uma das características da VC. Mas, ao mesmo tempo, é o principal nó do abuso espiritual e seu eventual desvio sectário. Ao Pai em Cristo é feita uma promessa de obediência através de mediações humanas. Se trata de escutá-Lo juntos, mesmo confiando que na voz do superior há uma palavra de Deus para a vida de alguém.

Mas a obediência tem limites. Em primeiro lugar, entende-se no contexto de uma Regra. E todos, incluindo o superior ou a irmã carismática de plantão, tem que se conformar com um modo de vida assumido livremente. Em segundo lugar, a profissão de obediência nunca exime da própria responsabilidade de discernir o que Deus quer. A decisão do superior faz parte das mediações, mas não substitui a própria inteligência nem a própria consciência. O oposto da obediência evangélica é a submissão infantil a uma figura supostamente “escolhida” por Deus. Infelizmente, na VC existem “obediências” que sepultam a liberdade, seja porque os que assumem a autoridade as exigem, seja porque há quem espere que tudo venha de cima, libertando-se da sua insegurança. Em terceiro lugar, a própria obediência deve permitir corrigir aquele que exerce o serviço de governo. Se de fato nunca se deixa ser questionado, algo está errado. É raro que o Espírito Santo sempre fale através da mesma pessoa. Nenhum voto de obediência é feito sob condição de simpatia ou concordar com o superior, mas esse e todos devem estar sob os mesmos Princípios Morais e fé. Onde não há obediência a uma regra comum, por flexível que esta seja, prevalecerá o poder do mais forte.

Os repetidos escândalos relacionados ao abuso mostram como o Santuário da consciência pode ser afogado por anos de mentiras, manipulação e obediência insana16. Quando, por exemplo, um jovem se aproxima com questões vocacionais, os que o acolhem devem ajudá-lo a esclarecer laboriosamente a sua consciência, mas nunca ocupar o seu lugar. Só com liberdade interior pode responder verdadeiramente a Deus. Convidar, sim. Impor, insistir, seduzir, reter, jamais. Tal dinâmica de coerção em nome da fé pode ocorrer em situações muito diversas da VC17.

O Direito Canônico codifica a distinção entre foro interno e foro externo: “Os membros devem dirigir-se com confiança aos seus superiores, aos quais podem abrir o coração livre e espontaneamente. No entanto, os superiores estão proibidos de induzir de qualquer forma aos membros para que manifestem sua consciência a eles. O Código é contundente: “Nunca se pode pedir a opinião do diretor espiritual ou dos confessores ao decidir sobre a admissão às ordens ou sobre a saída do seminário”. Isso poderia se aplicar analogamente, por exemplo, à admissão à profissão religiosa. Mas muitas vezes esse aspecto se confunde na VC. Se o acompanhamento espiritual ou psicológico cair nas mãos de alguém que ocupa um serviço hierárquico ou é exercida desde dentro de um instituto, a pessoa pode ser privada de um espaço de confiança, e se corre o risco de apoderar-se dela ou de várias indiscrições. Um superior maior não pode acompanhar os membros de uma província, mesmo que eles o peçam e deverá estar atento aos seus afetos. Um formador não deve pedir contas ao acompanhante de um formando19. Se queremos uma vida consagrada adulta, livre e saudável, precisamos ter isso em mente.

Lembremo-nos do ditado: “O poder sempre corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente.” Por esta razão, a VC reconheceu juridicamente a necessidade de ‘contrapoderes’. Figuras como os colaterais, admonitores, imediatos, as visitas canônicas, etc. pretendem ajudar no desempenho do difícil ministério da autoridade. São contrapesos concretos que garantem a saúde de todo o corpo. Muitas dessas figuras hoje foram relegadas a uma função rotineira e de “catálogo”, talvez porque o personalismo também alcança as estruturas de governo da VC. No entanto, há uma sabedoria muito importante na existência de tais contrapoderes.

Conclusão

Não é mais possível se esconder atrás da ignorância ou espiritualizar o fenômeno do abuso, nem argumentar que são sempre fatos periféricos. O silêncio é cúmplice. Os abusos espirituais não fazem parte dos conflitos normais da vida comunitária ou institucional. Não. São uma dinâmica perversa e uma grave doença do corpo eclesial. Por isso, recorda o Papa, devemos “agradecer a quem teve a coragem de denunciar o mal sofrido: ajuda a Igreja a tomar consciência do que aconteceu e da necessidade de reagir com decisão”20. As vítimas nunca são uma ameaça, mas uma parte essencial da solução. Para o seu bem e para o bem da VC, somos solicitados a definir o problema e iniciar uma conversa fraterna. Requer também agradecimento àqueles que assumiram a autoridade com verdadeira abnegação e santidade. O conhecimento sempre ajudará a discernir e expandir a alegria da Vida Consagrada. E nos libertará da sedução acrítica de figuras carismáticas que, em nome de Deus, impõem sua própria palavra.

Aos que conseguem sair desta violenta espiral “religiosa”, há um longo caminho pela frente de perdão e reconstrução pessoal. Só assim poderão respirar novamente o ar puro do Evangelho que lhes foi roubado pela opressão de um poder doentio e por uma prática perversa da autoridade espiritual justificada pelo Evangelho. Escutemos hoje o seu grito: “Não consigo respirar!” Eles certamente serão encorajados pelas palavras desarmadas de Jesus, o único Mestre e Senhor: “Não vos chamo servos; vocês são meus amigos” (Jo 15, 15). Ele nunca esquecerá que à sua amizade eles queriam dedicar suas vidas inteiras.

Referências

  1. Entrevista en el periódico ABC (12 de febrero de 2019).
  2. FRANCISCO, exhortación apostólica Christus vivit, 98 y 95.
  3. M.-F. HIRIGOYEN, El acoso moral, Paidós (Barcelona, 1999), pp. 79-84; N. NARANJO, Sobrevivir
    a la manipulación, Mensajero (Bilbao, 2011), pp. 46-51; M. HURNI-G. STOLL, Saccages
    psychiques au quotidien, L’Harmattan (París, 2002).
  4. FRANCISCO, “Conversación con la USG”, en La Civiltà Cattolica 4000 (2017), p. 327.
  5. FRANCISCO, Homilía en Santa Marta (15 de junio de 2020).
  6. A. LÓPEZ QUINTÁS, La revolución oculta: manipulación del lenguaje y subversión, PPC (Madrid,
    1998).
  7. I. PIÑUEL, Mobbing, Sal Terrae (Santander, 2001), pp. 111-126.
  8. HIRIGOYEN, op. cit., p. 159.
  9. D. DE LASSUS, Risques et dérives de la vie religieuse, Cerf (París, 2020), pp. 360-366. En el
    contexto de la VC, junto a este trabajo de referencia, consultar AA.VV., Vie religieuse et liberté,
    CORREF (Conferencia de Religiosos de Francia), 2018.
  10. Cfr. V. KLEMPERER, LTI: El lenguaje del Tercer Reich, Círculo de Lectores (Barcelona, 2005).
  11. J.-C. BOUCHOUX, Los perversos narcisistas, Arpa (Barcelona, 2016), pp. 99-120; HIRIGOYEN,
    op. cit., pp. 85-100.
  12. D. DE LASSUS, op. cit., p. 69.
  13. Testimonio de M. Janssens, exhermana de la Comunidad de Saint-Jean, en el documental de
    la televisión católica KTO: Emprise et abus spirituel (J.-C. y A.-M. DURET, 2018).
  14. Testimonio de Bruno, exmiembro de la Fraternidad monástica de Bethleem, https://www.avref.
    fr/fichiers/TEMOIGNAGE-collectif-B%C3%A9thl%C3%A9em.pdf
  15. A. CANDIARD, “Respectons le sanctuaire qu’est la conscience”, en Christus (2020), pp. 13-16.
  16. G. ROBLERO, “Ejercicios espirituales y abuso de conciencia”, en Manresa (2020), pp. 153-162.
  17. CIC, 630.
  18. PENITENCIARÍA APOSTÓLICA, Nota sobre la importancia del fuero interno y la inviolabilidad del
    sigilo sacramental (29 de junio de 2019).
  19. FRANCISCO, Christus vivit, 56.

Terapeuta e Escritora

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