Espiritualidade,  Psicologia

Abuso de consciência

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Em determinadas ocasiões o Papa Francisco reiterou a luta da Igreja contra os abusos sexuais, de poder e de consciência. Deixando claro, desta forma, que a crise dos abusos não diz respeito apenas aos crimes sexuais. Várias pesquisas acadêmicas no âmbito católico trouxeram a constatação de que os abusos de consciência são especialmente importantes nas dinâmicas abusivas e constituem um grave dano a dignidade humana.

A noção de abuso de consciência começou a ganhar relevo a partir da crise dos abusos sexuais dentro do contexto eclesial, uma vez que para prevenir os ditos abusos é essencial impedir aos abusos de poder e de consciência. Samuel Fernandéz, em um dos seus artigos sobre o tema, declarou que um dos principais obstáculos para enfrentar o abuso de consciência é que ainda não se reconhece a sua gravidade e prevalência na Igreja. Ele reafirma que este tipo de abuso é um atentado contra a dignidade humana e quem o padece pode sofrer consequências físicas, espirituais e psicológicas. Esse abuso contradiz o coração do Evangelho porque causa dano à liberdade dos filhos de Deus e deforma o rosto do Pai. Quem comete abuso de consciência e utiliza Deus para seus fins atenta contra o mandamento que declara “não tomarás o nome de Deus em vão”.

Algumas pessoas pensam que se não há agressão física ou sexual, então não é algo grave. Mas as evidências demonstram que o abuso psicológico pode ter efeitos tão ou mais graves do que um abuso sexual. O abuso de consciência no âmbito católico implica o uso do nome e a vontade de Deus, um representante da Igreja que possua poder (de função ou espiritual) e a existência de uma relação de confiança entre a vítima e o abusador.

Segundo Fernandéz, “no âmbito católico, o abuso de consciência é um tipo de abuso de poder que controla a consciência da vítima até o ponto em que o abusador, tomando o lugar de Deus, obstrui ou anula a liberdade de juízo da vítima e a impede de estar a sós com Deus em sua consciência. Esse tipo de abuso dana a dignidade humana e pouco a pouco lesiona a pessoa a nível espiritual, psicológico e físico.”

O Padre Francisco Insa define abuso de consciência como “aquelas ações realizadas no contexto de uma relação de direção ou ajuda espiritual, onde a pessoa que guia atribui a si mesmo uma autoridade divina – ou seja, identifica o seu conselho com a vontade de Deus – impondo-se sobre a identidade, a liberdade e a responsabilidade da pessoa guiada em um âmbito relativo ao juízo moral. (…) Nos inclinamos a pensar que o abuso de consciência é uma forma de abuso espiritual em que o abusador substitui ao abusado em seu juízo de consciência (na consideração do que deve ou não fazer, o que é lícito ou pecaminoso, coloca-o em risco de perder sua salvação eterna, etc).”

O cristão esta chamado a escutar a voz de Deus através de diferentes formas de mediação. Essas mediações ou influências externas são apenas um instrumento, não a vontade de Deus em si mesmas. Portanto há sempre que discerni-las. A consciência não é prejudicada com o ensino, a formação, exortação ou admoestação. Para evitar ao abuso de consciência não precisamos renunciar a aconselhar, iluminar, animar e corrigir senão a coagir e controlar a consciência do outro.

É preciso aprender a diferenciar as influências legítimas que iluminam a consciência daquelas que a obstruem ou anulam. O problema não gira em torno de a consciência receber ou não influências externas. Somos seres relacionais e portanto a influência faz parte da nossa condição humana. Proteger a consciência não significa isolar ela, mas sim evitar influências abusivas. Bem sabemos que as relações de mediação eclesial (confissão, acompanhamento e formação) são essenciais e muito benéficas para o desenvolvimento do cristão.

Insa recorda que há um risco de considerar abuso ao que não é. Apresentar as exigências da moral cristã não significa necessariamente forçar a consciência de alguém. Segundo ele, o abuso de consciência acontece de forma principal quando os princípios positivos se apresentam erroneamente como absolutos. Por exemplo, se alguém diz: deves ir a Missa todos os dias ou você se condenará.

Na Consituição Pastoral Gaudium et Spes, temos no §16 que “A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser.” E no §17 “A liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem. Pois Deus quis «deixar o homem entregue à sua própria decisão», para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele. Exige, portanto, a dignidade do homem que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja movido e induzido pessoalmente desde dentro e não levado por cegos impulsos interiores ou por mera coacção externa.” 

Samuel esclarece dizendo que quando “a vontade de Deus” é imposta por quem está em uma posição de autoridade de maneira que obstrui o discernimento, então se fere a consciência. Cada vez que se suplanta o discernimento que corresponde a consciência pessoal ou se interfere na intimidade espiritual do cristão, se comete um abuso, porque a consciência perde a sua liberdade de juízo e deixa de ser o lugar de encontro a sós com Deus. A autoridade eclesial nunca deve esquecer que ela é apenas uma mediação e não a vontade de Deus em si mesma.

Qualquer pessoa que goze de uma autoridade espiritual pode cometer abusos de consciência. Essa autoridade pode ter um respaldo eclesial (alguma aprovação ou função ligada diretamente a Igreja, como sacerdotes, coordenadores pastorais, líderes de movimentos, fundadores, superiores, etc). Ou então pode ser uma autoridade espiritual autorreferencial, ou seja, a pessoa possui em si mesma uma autoridade que as pessoas reconhecem. Essa autoridade não está ligada a um cargo, mas à própria pessoa. Em alguns casos teremos os dois casos em um, uma pessoa com autoridade espiritual e autoridade de cargo ao mesmo tempo. Temos o exemplo dos grandes líderes carismáticos (não confunda com RCC), que por sua própria personalidade são capazes de atrair e liderar pessoas de forma natural.

Os abusos de consciência podem ser um ato isolado ou uma conduta abusiva sistemática e constante. Tanto religiosos quanto leigos podem cometer este tipo de abuso. E também precisamos levar em conta a intencionalidade do abusador. Há aqueles que abusam das vítimas conscientemente, visando seus próprios interesses e manipulando. E há aqueles que cometem este abuso sem má intenção, apenas por má formação. Existem líderes abusivos e também temos bons líderes com práticas de tendência abusiva em apenas alguns aspectos. De qualquer forma, a culpa nunca é da vítima.

Segundo Fernandez, o caráter religioso diferencia o abuso de consciência de outros tipos de abuso. Nele o abusador não precisa utilizar violência nem sedução. Ele se vale apenas da confiança religiosa para dominar a vítima. É importante a ressalva que ele faz, dizendo que há uma responsabilidade eclesial em apresentar pessoas como confiáveis. E que mesmo quando o abuso se dá entre indivíduos, sempre tem uma dimensão institucional.

Segundo Insa, essas são algumas ações concretas de abuso de consciência:

  • O abusador faz o abusado crer que peca contra Deus se nã segue suas indicações, de modo que o juízo moral da vítima se baseará nas palavras do guia e não nos mandamentos de Deus;
  • O abusador ameaça ou chantegeia implica ou explicitamente o abusado com consequencias espirituais negativas ( condenação eterna, uma vida desgraçada, degradação moral, etc) se não se dobra aos seus conselhos;
  • O abusador impões uma determinada decisão moral em âmbitos que a Igreja deixa ao livre discernimento do indivíduo (por exemplo, proibir uma pessoa casada de usar de métodos naturais de regulação de natalidade)

O abuso de consciência pode se manifestar de várias formas por parte do abusador, como:

  • Colocar-se como intermediário entre a vítima e a “vontade de Deus”
  • Obrigar a vítima a prestar contas, a “dizer tudo” ao líder ou a fazer certas coisas
  • Ingerir-se no processo decisório da vítima
  • Restrição ao sigilo e ao silêncio
  • Abuso da Sagrada Escritura, documentos do magistério ou de argumentos espirituais para controlar o comportamento da vítima de acordo com o que o abusador espera
  • Obrigação de considerar o abusador como detentor de uma posição “divina

Cito no recorda que a consciência individual é a parte mais sagrada do homem. “Pode equivocar-se, mas a devemos seguir, ainda que implique em errar. O papel do acompanhante não consiste em dizer a pessoa o que deve fazer, mas sim ajudar a ter mais luz sobre o que considera melhor para si mesmo. Tomar o lugar da consciência do outro é um abuso de consciência”.

É preciso elucidar que estes abusos se dão em um clima de autoritarismo explícito e em outras vezes muito sutil. Muitos líderes pensam que tem razões para acostumarem as pessoas a submeterem-se a eles. Pensam que são mais eficazes, que as pessoas são muito lentas, que o problema é muito objetivo, que tem mais conhecimento e experiência. Contudo, esta atitude autoritária é prejudicial e deforma a relação da pessoa com Deus.

Um abuso deste tipo é sutil e é difícil dar-se conta. Uma vítima disse “se houvesse tido esses conceitos em minha cabeça, estaria melhor preparada para reconhecer e rechaçar o abuso”. Por isso é importante trazer e falar sobre este assunto, tanto para as lideranças quanto para o povo em geral. Também já se está trabalhando mais ativamente para desenvolver sanções no Código de Direito Canônico a respeito dos abusos de consciência.

Consequências graves acometem vítimas de abuso de consciência. A maior parte delas sente que há uma barreira entre elas e Deus e perdem progressivamente a capacidade de se relacionarem-se com Ele. Sentimentos de raiva e revolta atingem muitas das que tem a imagem de Deus confundida pelo abusador, criando uma percepção Dele como carrasco e exclusivamente punitivo. As feridas profundas na dignidade e espiritualidade levam muitas vítimas a se afastarem definitivamente da religião e de Deus. Além disso, são acometidas por baixa auto estima, dificuldade em tomarem decisões e insegurança. Não são raras as que desenvolvem problemas psicossomáticos.

Se você está sentindo ou passando por isso, procure ajuda. A Igreja e Deus não querem que você seja abusado, mas sim acolhido e cuidado. Líderes abusivos são autoritários, extremistas, não aceitam questionamentos, fazem você se sentir a pior pessoa do mundo. Líderes saudáveis são respeitosos e pacientes, te ajudam de forma saudável a amadurecer e crescer nos aspectos da sua vida.

Todos temos que assumir a responsabilidade de nossa vida e decisões. Ainda caminhando no vale das incertezas, nas dúvidas e angústias, nenhuma figura de autoridade pode entrar no espaço que está entre cada um de nós e Deus. Nenhum deles é capaz de apaziguar nossas angústias mais profundas. Cabe a cada um de nós desenvolver uma relação de intimidade com o próprio Deus, utilizando das mediações autênticas mas jamais permitindo que alguém seja um deus na nossa vida.

Referências

1- https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2018/documents/papa-francesco_20180820_lettera-popolo-didio.html

2- Abuso de poder, abuso espiritual y abuso de consciencia; Johannes y Francisco Insa; 2023

3- Samuel Fernandez, Reconhecer os sinais de alarme do abuso de consciência; 2021

4- David Cito, Breves notas canônicas sobre o conceito de abuso de poder e consciência

5- Deixo como indicação de leitura as Catequeses sobre o Discernimento do Papa Francisco

Terapeuta e Escritora

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