Psicologia

Trauma Religioso

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Espiritualidade e religião são amplamente reconhecidos como fatores protetivos e de bem-estar. A transcendência ajuda a dar sentido ao mundo respondendo às grandes questões da vida e trazendo um sentimento de segurança diante da experiência da vida. Ela pode trazer, portanto, sentimentos de conforto, cura e pertencimento. Inúmeros estudos têm apontado que a espiritualidade traz benefícios para a saúde física e mental. A espiritualidade e religiosidade são recursos valiosos utilizados pelas pessoas no enfrentamento de doenças e do sofrimento.

Como elemento estruturante da experiência humana, a espiritualidade está ligada a manutenção e fortalecimento da saúde física, mental e social, havendo estudos cada vez mais qualificados nas últimas décadas apontando benefícios diretos como redução de estresse, ansiedade e depressão, diminuição no uso de substâncias e tentativas de suicídio, além de melhor qualidade de vida e prognóstico psiquiátrico, bem como aumento da expectativa de vida global em até 7 anos adicionais e diminuição do estresse oxidativo, contribuindo para enfrentamento às doenças degenerativas, como o Alzheimer. Não obstante, há diversos impactos indiretos da espiritualidade e religiosidade, como o aumento da resiliência – isto é, estratégias subjetivas para lidar com os desafios da vida -, do convívio social e de uma visão positiva do mundo, compartilhada por uma comunidade que pode oferecer suporte.

Contudo, nem sempre a experiência espiritual ou religiosa é benéfica para o indivíduo. Lamentavelmente há uma ampla variedade de grupos ou líderes que utilizam a fé das pessoas para perpetrarem uma série de abusos psicológicos, físicos, financeiros, etc. Especialmente quando a doutrina do grupo é fanática, autoritária, causa alienação e isolamento, controla e anula a personalidade do indivíduo e o leva a um estado de estresse constante e progressivo, o indivíduo pode desenvolver a Síndrome do Trauma Religioso.

“Depois de 27 anos tentando viver uma vida perfeita, eu achei que tinha falhado… Eu tinha vergonha de mim durante todo o dia. Minha mente lutava contra ela mesma, sem alívio. Em sempre acreditei em tudo que me foi ensinado, mas ainda assim pensava que não tinha a aprovação de Deus. Eu pensava que ia morrer no Armagedom. Durante anos, eu me machucava literalmente, cortava e queimava meus braços, para me punir antes que Deus o fizesse. Levei anos para me sentir curada.” Esse relato é de um paciente de Marlene Winell, autora do Leaving the Fold.

Trauma religioso não é um tipo diferente de trauma, mas um trauma que acontece em circunstância religiosa ou espiritual. Sendo assim, sua manifestação e consequências apresentam especificidades além dos sintomas comuns a qualquer trauma. Dra. Marlene Winell foi a primeira pessoa a usar o termo Síndrome do Trauma Religioso para descrever a ampla gama de problemas emocionais que as pessoas enfrentam quando abandonam religiões/espiritualidades altamente controladoras, autoritárias, fanáticas e abusivas.

Segundo o Instituto de Trauma Religioso, este tipo de trauma é uma resposta física, emocional ou psicológica a crenças, práticas ou estruturas religiosas que é vivenciada por um indivíduo como avassaladora ou perturbadora e tem efeitos adversos duradouros no bem-estar físico, mental, social, emocional ou espiritual de uma pessoa. Ocorre quando as crenças, práticas ou experiências dentro de um contexto religioso se tornam prejudiciais para alguém. Essas experiências geralmente são sistêmicas, tendo mais de um indivíduo por grupo com quadro clínico. Elas podem deixar efeitos duradouros na saúde mental e no bem-estar geral de uma pessoa. É importante reconhecer que o trauma religioso pode impactar cada indivíduo de forma diferente. O que é traumático para uma pessoa pode não ter o mesmo impacto em outra. Além disso, o trauma religioso pode impactar pessoas de diferentes origens religiosas.

É importante destacar que embora a vivência do trauma mude e algumas pessoas não desenvolvam resposta traumática em determinadas situações, isso não anula o fato de que certas práticas são absolutamente inaceitáveis, independente do argumento religioso utilizado. Abusos ou assédios sexuais e morais, maus tratos físicos, negligência com saúde e aspectos relacionados à dignidade da pessoa, carga de trabalho extenuante, uso de técnicas de controle mental e manipulação emocional, invasão e manipulação de consciência, abusos de autoridade, entre outros.

O trauma religioso ocorre então quando a experiência religiosa de uma pessoa é estressante, degradante, perigosa, abusiva ou prejudicial. Muitas formas de trauma religioso não estão associadas a eventos específicos, mas se acumulam ao longo de um longo período de tempo por meio de mensagens prejudiciais impostas pela comunidade e de um estilo de vida debilitante e/ou precário.

Segundo Herman, pessoas submetidas a traumas prolongados e repetidos desenvolvem uma forma insidiosa e progressiva de transtorno de estresse pós-traumático que invade e corrói a personalidade. A vítima de trauma crônico pode sentir que foi mudada irrevogavelmente ou pode perder a sensação de que ela tem alguma individualidade.

Como sintomas da síndrome do trauma religioso, há disfunções que variam em número e gravidade de pessoa para pessoa. Na esfera cognitiva, pode haver sinais de confusão, dificuldade em tomar decisões e pensar criticamente, quadros de dissociação e confusão de identidade. Afetivamente encontramos raiva, tristeza, falta de sentido, culpa, solidão, imaturidade emocional e cognitiva, entre outros. Distúrbios do sono, pesadelos, distúrbios alimentares, abuso de substâncias e somatização são sintomas fisiológicos e de funcionamento do organismo. Em relação ao social, perda de habilidades sociais, dificuldade de reinserção social, rupturas nos relacionamentos familiares e amizade, entre outros. O trauma religioso também foi associado a resultados graves, como suicídio.

Pode-se identificar esta síndrome através dos seguintes sintomas, ainda de acordo Winell: “Confusão mental, dificuldade em tomar decisões e pensar por si mesmo, falta de sentido ou direção na vida, baixa autoestima, ansiedade de estar no mundo, ataques de pânico, medo da condenação, depressão, pensamentos suicidas, distúrbios do sono e alimentares, abuso de substâncias, pesadelos, perfeccionismo, desconforto com a sexualidade, imagem corporal negativa, problemas de controle, de impulso, dificuldade de desfrutar o prazer ou estar presente aqui e agora, raiva, amargura, traição, culpa, sofrimento e perda, dificuldade em expressar emoções, ruptura da rede familiar e social, solidão, problemas relacionados com a sociedade e questões relacionamento pessoal.”

Alguns sintomas de trauma religioso incluem: perfeccionismo compulsivo, crise de fé ou desilusão com a espiritualidade; odio a si mesmo, baixa autoestima ou autoestima comprometida; sentimentos constantes de vergonha ou culpa e hipervigilância. Ataques de pânico e uma profunda apatia e desconexão consigo mesmo e com o mundo ao redor também costumam estar presentes. Alguns dos efeitos a longo prazo do trauma incluem: ideação suicida; flashbacks de experiências traumáticas específicas ou casos de abuso espiritual; relacionamentos pessoais comprometidos ou incapacidade de nutrir relacionamentos pessoais; dificuldade em confiar nos outros; sentimentos generalizados de desesperança, especialmente em combinação com culpa, bem como culpar a si mesmo por todos os aspectos negativos da vida; depressão; comprometimento da identidade pessoal.

Traumas religiosos podem ter um impacto profundo na saúde mental, causando uma série de desafios, como o luto. Pessoas que vivenciaram traumas religiosos podem lidar com crise de fé ou perda de crença. Segundo a pesquisadora Laura Anderson, o trauma é uma resposta física, emocional ou psicológica a uma crença, prática ou estrutura religiosa que sobrecarrega a capacidade de alguém de enfrentar e regressar a uma sensação de segurança. Muitas vezes, isso pode parecer estar preso em uma luta, fuga ou congelamento em resposta a uma crença, prática ou estrutura religiosa. Podem ser sentimentos generalizados de desamparo, impotência e vergonha como resultado de práticas e mensagens religiosas. Incluem um sentimento generalizado de desamparo, terror e medo.

O modo como algo resulta em trauma religioso para uma pessoa depende de muitos fatores diferentes – muitos dos quais estão além do seu controle consciente. A história, o acesso a relacionamentos seguros e afetuosos, habilidades de enfrentamento e muitas outras coisas estão na base de como o corpo de uma pessoa pode interpretar algo que é opressor. A Síndrome do Trauma Religioso se manifesta em pessoas de todas as idades, mas afeta de maneira mais profunda as crianças. Segundo Winell, “As pessoas doutrinadas pelo fanatismo desde criança podem ser aterrorizadas por memórias de imagens do inferno e do apocalipse. Algumas sobreviventes desse período, as quais eu prefiro chamar de ‘recuperadas’, têm flashbacks, ataques de pânicos, ou pesadelos na vida adulta, mesmo quando se libertaram das pregações teológicas.”

Um paciente relatou seus tormentos dessa fase de sua vida: “Eu acreditava que ia para o inferno por acreditar que estava fazendo algo de muito errado. Estava completamente fora de controle. Às vezes, eu acordava no meio da noite e começava a gritar, agitando os braços, tentando me livrar do que sentia. O medo e a ansiedade tomaram conta da minha vida”. Winell afirmou que a recuperação de quem nasceu em uma família de fanáticos religiosos é mais difícil em relação àquele que adotou uma crença fundamentalista na vida adulta, porque não dispõe de parâmetro de comparação.

Nem sempre as vítimas conseguem enxergar que são vítimas. Há uma normalização terrível a respeito do sofrimento no contexto religioso e inclusive a maior parte das vítimas são culpabilizadas pelo que passam, excluídas por serem consideradas fracas. Além do uso de argumentos religiosos para manipular o indivíduo levando-a a suportar o insuportável até se quebrar definitivamente.

A jornada de recuperação de trauma religioso é única para cada pessoa. Incluirá desconstruir suas crenças pessoais, restaurar a autoestima, estabelecer limites saudáveis ​​dentro de sua religião e, se possível, reconstruir sua espiritualidade ou práticas religiosas. É importante destacar que só porque alguém quer se curar de um trauma religioso não significa que ele deve abandonar seu sistema de crenças ou prática espiritual. Muitos daqueles que se recuperam de um trauma espiritual encontram descanso no sistema de crenças que eles foram capazes de redefinir e são capazes de explorar novas maneiras de se conectar com o transcendente. A própria vivência da espiritualidade de forma saudável pode atuar como fator de melhora.

 

Terapeuta e Escritora

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